Pedro de Santi
Aproveitando o feriado, dei uma repassada em parte da produção nacional recente de livros de psicanálise. É impressionante a quantidade e qualidade envolvidos. Como a produção de artigos tem sido massacrada pela imposição de produtividade acadêmica, boa parte deles tem se tornado formais e desinteressantes. O foco passou a ser a pontuação no Lattes e muito do que é feito passou a ter este fim (como finalidade e término do processo).
Os livros- viva eles- mantêm um potencial de maior respiro e criatividade. Muitos dos que trato abaixo são o resultado de dissertações e teses, assim como de décadas de experiência clínica. Cito 5 livros, todos publicados em 2016 pela Editora Escuta.
Dentre os tantos livros que retomei, encontrei uma tendência disseminada, em modos diferenciados. É recorrente a questão da implicação do analista.
Não se trata de implicação no sentido jurídico. Não temos, até onde sei, psicanalistas citados em depoimentos na Lava-jato. Mas sim, trata-se de implicação no sentido de envolvimento e comprometimento, inclusive na esfera política. Quem esperaria um livro chamado “Ditadura civil-militar no Brasil. O que a psicanálise tem a dizer”? E com a expressão ‘civil-militar’ o livro, organizado por Flavio Ferraz e Maria auxiliadora Arantes, busca ainda pela implicação da sociedade civil na ditadura. Tema espinhoso e provocativo.
No campo mais especificamente clínico, a dimensão da implicação do analista aparece mesmo em orientações teóricas distintas. De orientação lacaniana, o livro “A (de)formação do psicanalista”, de Dominique Fingermann, trata de como um psicanalista nasce (e só pode nascer) do interior se sua própria análise pessoal. Sem esta implicação com o próprio desejo e com os limites dados pelo conhecimento do inconsciente, não se pode sustentar um atendimento analítico.
Em outra orientação teórico-clínica, “Enactments e transformações no campo da analisante”, de Gina Tamburrino, traz considerações atuais e históricas sobre como o estudo da transferência levou ao da contratransferência. Dos desdobramentos desta história, chegamos à concepção de que a situação clínica transcende a individualidade de cada um dos participantes, de modo que a implicação do analista é, de fato, condição para que uma transformação possa acontecer.
Encontramos também nesta produção recente o resultado de trabalhos coletivos em instituições, como o “Desafios atuais das práticas em hospitais e nas instituições de saúde” (Kamers, Marcon e Tourinho, organizadoras), que discute as noções de saúde e doença, assim como o papel do psicanalista no campo privilegiadamente médico: o Hospital. E aqui começa a percepção de que a clínica psicanalítica não reside exclusivamente em consultórios.
Mas talvez o livro que leva a dimensão de implicação do analista mais longe seja o de Miriam Debieux, “A Clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento”. O título diz tudo. A autora parte de uma base extremamente sólida de compreensão sobre como nossa subjetividade é constituída na relação com o Outro. O Outro da linguagem, o outro imaginarizado do qual aguardamos por reconhecimento, o outro em sua alteridade, o outro social. A partir daí, passa a tratar dos atendimentos dedicados àqueles que ficam nas franjas e restos de nosso processo civilizatório: os imigrantes, os refugiados, os infratores.
Este cruzamento de tantas obras no ponto da implicação, mais do que uma coincidência, é uma convocação. Possivelmente, é insustentável nos implicarmos em todas as área da vida o tempo todo. Mas todos sabemos o quanto o distanciamento e acionamento dos pilotos automáticos do dia a dia podem tornar estéreis e vazias nossa vida pessoal e profissional. Mas nosso refúgio em hábitos e rotinas irrefletidas não impedem que nossos atos tenham implicações éticas e políticas.
O distanciamento com relação aos objetos de estudo, característico da postura clássica do cientista; o discurso da vitimização; a posição de quem diz saber sobre o outro (um conselheiro, um astrólogo, um autor de auto-ajuda): figuras da recusa em se implicar em relações.
Para se implicar é necessário borrar distâncias e se incluir nas cenas. É preciso perguntar “qual a minha parte nisto?”, Como contribuo para que determinada situação se mantenha? Quais as consequências de minhas ações?
De uma perspectiva psicanalítica, isto passa por se aproximar do conhecimento dos próprios desejos e incompletude.
O individualista (ou pessoa narcísica ou Homem do mundo líquido) é, sem dúvida, alguém dirigido por seu desejo, mas numa dimensão plana, em direção ao atendimento imediato de sua demanda. Neste sentido, ele é mais alienado em seus desejos que sujeito dele.
Aquele que ingressa num coletivo, corre também o risco de alienar seu desejo singular sob o imperativo dos valores compartilhados pelo grupo.
Pode parecer paradoxal, mas o indivíduo se torna sujeito quando se alça para fora da dualidade ‘indivíduo’ versus ‘coletivo’. A produção psicanalítica nacional recente nos ensina que a condição para que isto aconteça é que a pessoa se implique em seu desejo. E este, em sua singularidade e abertura ao outro, se realiza ao reconhecer e sustentar sua implicação sociopolítica.
Isto já estava lá, afinal, na fala final de Édipo em sua tragédia quando, ao invés de lamentar e se vitimizar por ter cumprido um destino que não escolheu e ao qual tentou se opor, ele chama para si a responsabilidade por seus atos e livra a cidade da punição divina.