A promessa de entregar US$ 100 bilhões ao ano para o mundo em desenvolvimento a partir de 2020, feita pelos países industrializados em 2019, ainda não foi cumprida e só o será em 2023. O tópico gera desconfiança e frustração em Glasgow, na COP26 (sigla para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), que entra agora para sua semana decisiva.
Enquanto esperam os recursos, países mais vulneráveis e os em desenvolvimento querem que se abra outra discussão, com volumes anuais muito maiores e a partir de 2025. “A questão é quem serão os doadores. O mundo mudou muito, a lista dos países com maior riqueza é outra”, diz Jochen Flasbarth, vice-ministro de Meio Ambiente da Alemanha e chefe da delegação alemã em Glasgow, indicando que o tema promete tensões.
Flasbarth, que foi presidente da agência ambiental alemã antes de assumir a posição no Ministério, foi encarregado pelo presidente da COP26, o britânico Alok Sharma, a fazer um plano para informar à comunidade global quando e como os países ricos irão cumprir a promessa de financiamento climático. O economista alemão dividiu a tarefa com o ministro do Meio Ambiente e Clima do Canadá, Jonathan Wilkinson.
O “Climate Finance Delivery Plan” foi divulgado poucos dias antes do início da COP26, em 25 de outubro. Baseado na análise de dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o documento mostra que os países industrializados deverão avançar no cumprimento da meta em 2022 e certamente a atingirão em 2023. Os dados também atestam que a soma de US$ 100 bilhões será superada a partir de 2025.
Atualmente faltam cerca de US$ 20 bilhões para a promessa ser cumprida. A trajetória de entrega do financiamento climático leva em conta as novas promessas feitas pelos países ricos e também informações dos bancos multilaterais de desenvolvimento. Doações representaram 26,6% do financiamento público internacional do clima em 2019. Em contraste, 70,7% dos recursos públicos para clima foram empréstimos.
“Embora seja decepcionante que o objetivo não tenha sido alcançado até agora, um grande número de países desenvolvidos dobrou ou aumentou significativamente seus esforços – incluindo o Reino Unido, o Canadá e a Alemanha – o que significa que agora estamos muito mais próximos da meta”, diz o texto de divulgação do plano.
“O financiamento privado também tem tido desempenho abaixo das expectativas e o plano deixa claro que é preciso fazer mais a este respeito”, diz o texto.
A discussão sobre o futuro – o financiamento pós 2025 – foi aberta em Glasgow. A África do Sul, por exemplo, colocou a proposta de US$ 750 bilhões anuais a partir de 2025. O grupo dos países africanos e emergentes falam em US$ 1,3 trilhão.
A discussão não será fácil. “O mundo mudou tremendamente de 1992 para cá e há um bom número de países que estão em uma posição muito melhor economicamente do que estavam há 30 anos”, diz Flasbarth, indicando que a conta deve ser dividida entre mais países. Ele não diz, mas a pressão é grande sobre a China e a Coreia do Sul, por exemplo. Flasbarth também diz que a posição do Brasil na COP tem sido positiva.
A seguir, trechos da entrevista que concedeu ao Valor: Valor: A discussão sobre financiamento climático depois de 2025 está ocorrendo na
COP 26. Qual a sua posição?
Jochen Flasbarth: A promessa dos US$ 100 bilhões anuais foi feita pelos países desenvolvidos voluntariamente em Copenhague, em 2009. Não foi negociada. O que acontece agora é que começamos em Glasgow um processo de arquitetura financeira para depois de 2025 e este é um processo de negociação. Claro que a soma de dinheiro que deverá ser entregue terá que ser bem balanceada entre mitigação e adaptação. Também a questão de quem estará entre os doadores é um ponto a ser discutido.
Valor: O que o senhor quer dizer?
Flasbarth: O mundo mudou tremendamente de 1992 para cá e há um bom número de países que estão em uma posição muito melhor economicamente do que estavam há 30 anos. Existe a expectativa de que o grupo de doadores climáticos será maior do que foi o dos US$ 100 bilhões.
Valor: O senhor acha que este grupo terá membros diferentes? Flasbarth: A lista de países desenvolvidos e não desenvolvidos de 1992 obviamente não reflete a realidade dos países industrializados e não desenvolvidos de 2021 e ainda mais de 2025, ou depois disso. Não quero mencionar nenhum país especificamente, mas a riqueza dos países mudou enormemente e temos que assegurar, para os anos depois de 2025, que o nosso mundo é baseado em solidariedade para aqueles que necessitam.
Valor: Há um reconhecimento de que o plano feito por vocês é honesto e transparente, mas o resultado foi de frustração. O que o senhor pensa disso?
Flasbarth: Este relatório foi preparado pelo ministro Jonathan Wilkinson [ministro do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Canadá] analisando a capacidade atual dos países. Estivemos em contato com os países doadores e os bancos multinacionais de desenvolvimento e suas indicações de endosso. Todos os números foram melhorados pela OCDE e nós insistimos que só os números oficiais seriam contabilizados. Nossa meta não era fazer marketing dos países desenvolvidos. Nossa tarefa era ser provedores honestos de fatos e números e esboçar também alguns conselhos.
Valor: Há desapontamento com os resultados.
Flasbarth: Olhamos para estes números com os olhos dos países em desenvolvimento e o que posso dizer é que todos podem confiar nestes dados. Posso assegurar que são confiáveis e dão uma boa base para discussão. Ouvi dos países em desenvolvimento que eles têm respeito pelo que fizemos, mas claro, há desapontamento pelo fato de os números não chegarem ao prometido em 2020. Mas todos sabem que logo estaremos ali e que depois haverá mais do que os US$ 100 bilhões nos anos que vierem.
Valor: Porque o senhor acha que tem sido tão difícil cumprir a promessa?
Flasbarth: Há diferentes razões pelas quais os países desenvolvidos não chegaram a entregar os US$ 100 bilhões no prazo, mas ainda acredito que há um pacote positivo na mesa e que ninguém deveria estar frustrado. Entendo o desapontamento, mas não há razão para frustração.
Valor: E os motivos para os US$ 100 bi não terem sido entregues?
Flasbarth: Há algumas boas razões e outras nem tanto. Nós todos pensamos, no passado, que precisaríamos de mais dinheiro público para alavancar investimentos em energias renováveis, por exemplo. Mas estes investimentos foram feitos sem que, em muitos casos, houvesse dinheiro público porque trata-se de um ‘business case’. A eletricidade a partir de energia renovável é competitiva em muitos lugares do mundo. E isso é um dos motivos pelo qual o fator de alavancagem, a soma de recursos privados que pudemos mobilizar, foi menor do que esperávamos. E existem outras razões não tão boas.
Valor: Quais?
Flasbarth: Alguns motivos vêm de dificuldades dos países em desenvolvimento que precisam, por exemplo, garantir a segurança jurídica para investidores. Há obstáculos do lado dos países desenvolvidos, que deveriam tornar mais fáceis as garantias para investimentos climáticos. Temos um quadro misturado. Acho que esta é uma boa base também para a discussão de financiamento depois de 2025.
Valor: Mudando de assunto: sobre o tema de ‘Perdas e Danos’, dos países que estão perdendo seus territórios para o avanço do mar, por exemplo, há alguma solução?
Flasbarth: Creio que é preciso discutir mais ‘Perdas e Danos’. Estamos em um ponto insuficiente. Também acredito que precisamos ter uma visão mais ampla na ONU para ajudar países em que a crise climática leva a desastres. E que a ajuda seja urgente, ágil e fácil de acessar.
Valor: Este tema parece travado há anos nas rodadas climáticas.
Flasbarth: Conheço as demandas. Creio que fizemos algum progresso. Por exemplo, iniciativas da Alemanha e de outros colegas de cooperação internacional que há anos buscaram ampliar a cobertura de pessoas de países afetados por seguros privados, mas, claro, isso é apenas uma peça do quebra-cabeças. Este é um ponto muito sério em que as soluções não são fáceis. Mas concordo que temos que encontrar respostas rápidas e inclusivas para ajudar os países afetados pelos desastres das mudanças climáticas e que, por sinal, são países que não causaram o problema.
Valor: Outro ponto é a taxa que se discute no artigo 6, uma forma de levar recursos para o Fundo de Adaptação. A União Europeia (UE) é contra?
Flasbarth: O artigo 6 tem muitos aspectos. Querem garantir a credibilidade do mecanismo, como lidar com o transbordo do mundo de Kyoto [créditos remanescentes do Protocolo de Kyoto conhecidos por Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, MDL] e também a conexão com finanças para adaptação. No fim temos que conseguir um acordo que faça com que todos concordem. As negociações estão ocorrendo.
Valor: A Alemanha não assinou todas as declarações da semana passada, que procuraram abandonar ou limitar o uso de combustíveis fósseis. Por quê?
Flasbarth: O governo alemão está comprometido em abandonar financiamentos de usinas ou minas de carvão no exterior. Nossa questão é com gás. Temos que olhar para a declaração com mais cuidado. Em algumas situações, gás pode ser um combustível de transição, desde que compatível com as NDCs, as metas de neutralidade de carbono e também com as metas de Paris. Por isso estamos buscando mais esclarecimentos em uma das declarações. A razão que explica porque ainda não assinamos é que acreditamos que, mesmo no interesse de limitar a mudança climática, investimentos em gás ainda são importantes.
Valor: O senhor vê alguma mudança na postura brasileira nesta COP? Estão sendo mais pró-ativos?
Flasbarth: Temos algumas indicações. O Brasil concordou com a declaração do G20 há alguns dias, em Roma, comprometeu-se com a neutralidade do clima em 2050 e com a linguagem no G20 sobre 1,5o C – que esperamos esteja na decisão desta COP. Nestes temas o Brasil tem sido positivo. Também tem ajudado em algumas negociações. Sabemos que, para o Brasil, o artigo 6 é um tema relevante, assim como é para a UE. Não vou dizer que nossas conversas têm sido fáceis, mas sentimos que também do lado brasileiro há clima para um resultado positivo. Esperamos que, nos próximos dias, possamos fechar todos os tópicos com a colaboração do Brasil.
Valor: A China colocou alguns limites em se falar apenas de 1,5o C na COP 26 e os EUA têm problemas domésticos para entregar compromissos em Glasgow. A meta de 1,5o C ainda está na mesa?
Flasbarth: Esta meta está mencionada na declaração do G20 e a China assinou. Vejo condições positivas para que todos os países aceitem o 1,5o C. Creio que seja essencial. O Acordo de Paris não é tão explícito – fala em manter o aumento bem abaixo de 2o C mirando 1,5o C. Mas desde que recebemos o relatório especial do IPCC [sobre a importância de manter 1,5o C, divulgado em 2018], sabemos que é mais do que desejável a meta de limitar o aquecimento em 1,5o C, porque qualquer coisa além dele significa grandes desastres. Vou trabalhar para que esta seja uma decisão em Glasgow.