O capitalismo de stakeholders em xeque

Diferenças na crise com empresas que visam lucro de curto prazo são impressionantes 

Klaus Schwab 

À medida que a emergência global de saúde covid-19 continua, as consequências econômicas também aumentam. A economia global entrou em recessão, as empresas começaram a cancelar os serviços aos clientes e milhões de trabalhadores estão tecnicamente desempregados ou despedidos. Isto levanta a questão: o que aconteceu com o “capitalismo de stakeholders”, o modelo econômico esclarecido que muitas empresas adotaram há poucos meses? Como pode ser enquadrado com a realidade que estamos vivendo atualmente? 

Para responder a essa pergunta, precisamos lembrar o que é o capitalismo de stakeholders: garantir a preservação e a resiliência de longo prazo da empresa, e a integração da empresa na sociedade. Nesse sentido, uma crise econômica de curto prazo, como a induzida pela covid 19, revela quais as empresas que realmente se inseriram no modelo dos stakeholders, e quais são as que apenas o defenderam verbalmente, mantendo fundamentalmente uma orientação para o lucro a curto prazo. A crise da covid-19 é um teste decisivo que mostra quem tem “andado nu” apoiando o capitalismo de stakeholders. 

É claro que muitas empresas globais estão profundamente abaladas pela covid-19, e muitas tiveram de adotar medidas muito dolorosas. Muitas PME no setor hoteleiro, alimentício e de viagens tiveram de fechar por ordem do governo, deixando-as sem capacidade de resposta. Mas as diferenças entre as empresas globais que realmente orientaram os seus negócios para o modelo de stakeholders, e aquelas que tinham um modelo de acionistas de curto prazo, podem ser impressionantes. 

Em primeiro lugar, algumas grandes empresas utilizaram os seus lucros crescentes nos últimos anos para grandes programas de recompra de ações. Isto reforçou a sua rentabilidade a curto prazo e aumentou os bônus dos executivos. Mas confrontadas com a falta de reservas estratégicas ou investimentos, muitas dessas empresas são agora as primeiras a sofrer, incapazes de reverter a situação a menos que o governo intervenha. O exemplo mais óbvio vem das maiores companhias aéreas dos EUA, que gastaram 96% do fluxo de caixa livre nos últimos dez anos para recomprar as suas ações. 

Em contrapartida, algumas empresas utilizaram os seus lucros para investir na transformação digital, no talento, na I&D e nas suas relações com os clientes. Tal fato pode dar-lhes agora uma capacidade para reagir que as outras empresas não têm. A Microsoft, por exemplo, que está em primeiro no ranking das empresas apenas com capital dos stakeholders, colabora com o rastreador de coronavírus da Johns Hopkins e está fornecendo aos professores acesso e formação ao seu programa Teams para que possam ensinar de forma remota. Pode fazê-lo devido ao seu modelo de negócio, mas também porque os seus stakeholders esperam que assuma a sua responsabilidade em momentos como este. 

Em segundo lugar, algumas empresas, nas últimas semanas, continuaram a anunciar bônus e recompensas recorde para os seus CEOs, com base na rentabilidade de 2019 e nos preços das ações. A companhia aérea sediada no Reino Unido EasyJet, por exemplo, que procurou ajuda estatal depois de ter de cancelar a maioria dos seus voos, disse, no entanto, que avançaria com um pagamento de dividendos de 174 milhões de libras. Tal falta de visão não será esquecida – e não deve ser – por governos, clientes e funcionários, muitos dos quais estão sofrendo. 

Em contrapartida, Arne Sorenson, CEO do Marriot, cujos negócios e funcionários foram gravemente atingidos, anunciou que ele e o seu presidente não receberão salários em 2020 e cortará metade da remuneração da equipe executiva. Exemplificou a integração da empresa com os seus funcionários e as sociedades nas quais opera. De forma similar, o CEO da Kenya Airways, Allan Kilavuka, e a sua equipe executiva também concordaram com um corte salarial de 75 a 80%, em solidariedade com o pessoal de terra e de voo. 

Mas ser uma empresa voltada aos stakeholders não se trata apenas de sinais de curto prazo. As empresas que integraram um modelo de stakeholders podem simplesmente ter mais condições para ajudar durante esta crise, pois o seu modelo de negócio é mais robusto, e as suas alianças com as demais partes interessadas na sociedade, tais como o governo e o público em geral, são mais fortes. 

A gigante dos transportes marítimos Maersk dá o melhor exemplo. Ela ofereceu os seus navios e espaço de carga para fazer chegar bens de emergência onde forem necessários no mundo, mantendo ou criando rotas marítimas que não são necessariamente comercialmente viáveis. Pode fazê-lo graças à colaboração dos stakeholders em ação: a Dinamarca, onde tem a sua sede, é um dos países que mais protege os trabalhadores e as empresas durante esta crise, garantindo uma partilha significativa dos seus salários. O “contrato social” entre o povo, o governo e as empresas da Dinamarca permite-lhes ser resilientes e proativos em tempos de crise. 

Também a Unilever, que é uma das campeãs do modelo de stakeholders desde o mandato de Paul Polman, anunciou recentemente um donativo imediato de US$ 50 milhões em produtos de higiene para a Plataforma de Ação Covid. Esta plataforma foi estabelecida em resposta à emergência sanitária global pelo Fórum Econômico Mundial em parceria com a Organização Mundial da Saúde. O compromisso da Unilever com a mesma é uma prova do seu relacionamento duradouro com os seus clientes – pessoas normais que compram os seus produtos – em todo o mundo. 

Ambos os casos contrastam com empresas de produtos alimentícios conhecidas dos EUA, como o McDonald’s, a Subway e a Kroger, que têm dezenas de milhares de trabalhadores sem recebimento por licença médica. É uma falha, tanto dos governos como das empresas envolvidas, que levará a um prejuízo significativo para a subsistência dessa força de trabalho, a menos que o governo intervenha. 

As empresas com economia voltada aos stakeholders compreendem que uma emergência de saúde global, como a covid- 19, exige que todos os intervenientes sociais se reorientem temporariamente para dar a resposta necessária à emergência, e têm a agilidade e a preparação para fazê-lo. Isto não é uma coincidência. São as mesmas empresas que otimizaram para a prosperidade a longo prazo, e cultivaram o capitalismo das stakeholders. Durante estes tempos, e quando tudo isto acabar, devemos apoiar tais empresas. Elas representam o modelo econômico que nos fará sobreviver hoje, mas prosperarão novamente amanhã. 

Klaus Schwab é fundador e diretor executivo do Fórum Econômico Mundial de Davos  

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-capitalismo-de-stakeholders-em-xeque.ghtml

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