Novo modelo de Xi Jinping é conflitante

Desde maio, quando o presidente Xi Jinping introduziu pela primeira vez o conceito de modelo econômico de “circulação dupla”, os analistas que acompanham a economia chinesa têm tido dificuldades para entender exatamente com o que o governo chinês se comprometeu. Com base nas muitas referências formais que se seguiram, parece que a nova estratégia econômica de Pequim requer que o país continue a expandir a produção doméstica para exportação (“circulação internacional”) enquanto muda a economia para dar uma ênfase relativa maior à produção para o consumo doméstico (“circulação interna”). 

Em princípio, isso faz sentido. Depois de fechar a disparidade de fundo entre investimento desejado e investimento real – o que provavelmente ocorreu no início dos anos 2000 -, a China precisava basear o crescimento na demanda interna impulsionada pelo aumento dos salários, em vez de depender das exportações ou de investimentos cada vez menos produtivos. Como a China dependia demais destes últimos, sua dívida disparou até tornar-se uma das mais altas do mundo. 

E embora a “circulação dupla” seja apresentada como uma nova estratégia, na realidade ela não é. Pequim tem proposto algo semelhante pelo menos desde 2007, quando o então primeiro-ministro, Wen Jiabao, prometeu em um discurso que Pequim daria prioridade a reequilibrar a demanda doméstica na direção do consumo. 

Isso não aconteceu. A participação do consumo no Produto Interno Bruto (PIB) chinês continua a ser extraordinariamente baixa, apenas dois pontos percentuais mais alta em 2019 do que era em 2007. Entretanto, e não por acaso, durante o mesmo período a relação dívida/PIB da China dobrou. 

E isso vai piorar neste ano. Com a queda acentuada do consumo em relação ao PIB – em parte por causa da covid-19 e em parte por causa da resposta de Pequim à pandemia, focada na produção – a participação do consumo no PIB diminuirá em 2020 até eliminar a maior parte dos ganhos obtidos desde seu nível mais baixo, há uma década. Enquanto isso, a relação dívida/PIB da China, que subiu seis pontos percentuais em 2019, aumentará em extraordinários 16-20 pontos percentuais em 2020. Em outras palavras, pouca coisa mudou desde 2007, exceto pelo peso da dívida do país: fora isso, a demanda na economia chinesa está tão desequilibrada como sempre. 

Circulação dupla no nome, reequilíbrio por natureza: Isso é claramente insustentável e é por essa razão que é tão urgente para a China impulsionar uma demanda interna sustentável. No entanto, existem dois grandes problemas para Pequim com a dupla circulação. O primeiro é que reorientar a economia em direção à demanda doméstica, chame-se isso de “reequilíbrio” ou de “circulação dupla”, requer uma transformação econômica, social e política que provavelmente será muito maior do que Pequim – e a maioria dos economistas chineses e estrangeiros, para falar a verdade – parece perceber. 

As baixas taxas de consumo interno da China – entre as mais baixas da história – são principalmente uma consequência do fato da participação das famílias no PIB ser uma das menores do mundo em todos os tempos. Reequilibrar a demanda na direção do consumo significa nada menos do que um grande reequilíbrio da renda para as famílias comuns. Para que o consumo chinês seja alinhado de forma geral com o de outros países em desenvolvimento, as famílias devem recuperar ao menos 10-15 pontos percentuais do PIB à custa das empresas, dos ricos ou do governo. Isso significa que o reequilíbrio envolve uma transferência massiva de riqueza – e, com ela, de poder político – para as pessoas comuns. O que não será fácil. 

O segundo grande problema é a contradição interna que está no centro do novo modelo de “circulação dupla” da China. A “competitividade” das exportações da China, como o ex-escritor de Alphaville Matt Klein e eu explicamos em nosso livro “Trade Wars are Class Wars” (guerras comerciais são guerras de classe), depende de garantir que seja alocada aos trabalhadores, seja por meio de salários ou da rede de segurança social, uma parcela muito baixa do que produzem. Em outras palavras, o vigor das exportações da China depende, ao menos em parte, da pequena parcela que os trabalhadores retêm daquilo que produzem. 

E é aí que está o problema. Se a China só poderá contar com o consumo doméstico para impulsionar uma parcela muito maior do crescimento se os trabalhadores começarem a receber uma parcela muito maior do que produzem, então o processo de reequilíbrio vai minar obrigatoriamente a competitividade da China nas exportações. 

Isso significa que, para que a “circulação interna” seja bem-sucedida, a “circulação internacional” deve ser prejudicada. Uma não pode estimular a outra, como propõe Pequim: a mudança em si exigirá um período de ajuste difícil. 

Embora o vocabulário tenha mudado, o crescimento sustentável que os formuladores de políticas chineses querem ainda exige uma grande transformação na forma como a renda é distribuída aos diferentes setores. O desafio político não é apenas imenso como sempre, mas porque no passado o crescimento chinês dependeu tão fortemente das atuais distorções na distribuição de renda, a transformação para um novo modelo quase certamente exigirá um período de ajuste muito difícil. Para que a circulação dupla funcione, a circulação interna só pode ocorrer à custa da circulação internacional e, à medida que isso acontecer, a riqueza – e com ela o poder – deve ser transferida das elites de hoje para as famílias chinesas comuns. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/08/31/novo-modelo-de-xi-jinping-e-conflitante.ghtml 3/7

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