Mudanças climáticas agravam drama do Afeganistão

Algumas partes do Afeganistão têm registrado um aumento na temperatura que corresponde a quase o dobro da média global. As chuvas da primavera têm diminuído, de forma mais preocupante em alguns dos campos agrícolas mais importantes do país. As secas estão mais frequentes em amplas faixas do país; incluindo atualmente um penoso período de seca no norte e no oeste do país, o segundo em três anos.

O Afeganistão personifica um novo tipo de crise internacional, onde os perigos da guerra colidem com os perigos das mudanças climáticas, criando um ciclo vicioso apavorante que castiga algumas das pessoas mais vulneráveis do mundo e destrói a capacidade de seus países de lidar com a situação.

E embora seja simplista atribuir o conflito no Afeganistão às mudanças climáticas, os impactos do aumento de temperaturas agem como o que os analistas militares chamam de multiplicadores de ameaças, amplificando os conflitos pela água, deixando as pessoas desempregadas em um país cuja população vive em grande parte da agricultura, enquanto o próprio conflito consome atenção e recursos.

“A guerra exacerbou os impactos das mudanças climáticas. Há 10 anos, mais de 50% do orçamento nacional vai para a guerra”, disse Noor Ahmad Akhundzadah, professor de hidrologia da Universidade de Cabul. “Agora, não há governo e o futuro é incerto. Nossa situação atual é completamente desesperadora.”

Um terço de todos os afegãos enfrenta o que a ONU chama de níveis de crise de insegurança alimentar. Por causa dos conflitos, muitas pessoas não puderam cuidar de suas lavouras no tempo correto. E, devido à seca, a colheita deste ano com certeza será ruim. O Programa Mundial de Alimentos da ONU diz que 40% das safras foram perdidas, o preço do trigo subiu 25% e o estoque de alimentos da própria agência humanitária deve acabar até o fim de setembro.

O Afeganistão não é o único país a enfrentar tal combinação de infortúnios. Das 25 nações do mundo mais vulneráveis às mudanças climáticas, mais da metade é impactada por conflitos ou instabilidade social, de acordo com um índice desenvolvido pela Universidade de Notre Dame.

Na Somália, que sofre os impactos de décadas de conflito, o número de eventos climáticos extremos triplicou desde 1990, em comparação com o período anterior de 20 anos, tornando quase impossível para as pessoas comuns se recuperarem após cada embate. Em 2020, mais de um milhão de somalis deixaram suas casas em busca da sobrevivência; cerca de um terço por causa da seca, de acordo com a ONU.

Na Síria, uma seca prolongada, tornada mais provável pela mudança climática causada pelo homem, de acordo com pesquisadores, fez com que as pessoas saíssem das áreas rurais e alimentou as queixas latentes contra o governo que levaram a protestos em 2011 e, em última análise, a uma verdadeira guerra civil. Este ano, mais uma vez, a seca paira sobre a Síria, principalmente na região produtora de cereais, a Província de Hassakeh, no nordeste do país.

No Mali, uma violenta insurgência tornou mais difícil para os agricultores e pecuaristas lidar com uma sucessão de secas e inundações, de acordo com agências humanitárias.

As mudanças climáticas não podem ser responsabilizadas por uma única guerra, e, sem dúvidas, não pela do Afeganistão. Mas o aumento das temperaturas e os choques climáticos que são resultados delas agem como o que Marshall Burke, professor da Universidade Stanford, chama de “um acréscimo na escala que torna o conflito implícito pior”. Isso é particularmente verdade, argumentou ele, em lugares que passaram por um longo conflito e onde as instituições governamentais praticamente desapareceram.

“Nada disso quer dizer que o clima é o único ou o mais importante fator no conflito”, disse Burke, coautor de um artigo de 2013 que analisa o papel das mudanças climáticas em dezenas de conflitos ao longo de muitos anos. “Mas, com base nesses indícios, a comunidade internacional seria tola em ignorar a ameaça que o aquecimento global representa.”

O colapso do governo também tornou completamente incerta a participação do Afeganistão na Conferência do Clima (Cop-26), em novembro, disse o diretor da agência de proteção ambiental do país, Ahmad Samim Hoshmand. “Agora já não sei. Não faço parte de nenhum governo. Qual governo devo representar?”, disse.

Até recentemente, ele era a autoridade do governo encarregada de fazer cumprir a proibição do país de substâncias que destroem a camada de ozônio, incluindo resfriadores usados em aparelhos de ar-condicionado antigos e que são proibidos pelo Protocolo de Montreal, um acordo internacional que o Afeganistão ratificou. Poucos dias antes de o Taleban tomar Cabul, Hoshmand fugiu para o Tajiquistão. Os comerciantes de substâncias proibidas que ele ajudou a prender agora estão fora da prisão, ansiosos por vingança. Ele diz que vão matá-lo se ele voltar ao país.

Hoshmand agora está lutando contra o tempo para emigrar para outro lugar. O visto que lhe permite ficar no Tajiquistão expira em poucas semanas. “Minha única esperança são as pessoas que trabalham contra a destruição da camada de ozônio, a comunidade do Protocolo de Montreal, se elas puderem me apoiar”, disse ele.

A geografia do Afeganistão é um estudo de risco extremo, desde as montanhas de Hindu Kush, com picos cobertos por neve, ao norte; passando por suas fazendas de melão no oeste; até o árido sul, atingido por tempestades de areia.

Os dados sobre o clima são escassos para o Afeganistão. Mas uma análise recente com base nos poucos dados existentes sugere que uma diminuição nas chuvas de primavera já afetou grande parte do país, porém de forma mais intensa no norte, onde os agricultores e pecuaristas dependem quase complementarmente das chuvas para irrigar suas plantações e dar água para seus rebanhos.

“Os efeitos da seca prolongada são agravados pelo conflito e pela pandemia de covid-19 em um contexto em que metade da população já precisava de ajuda”, disse por e-mail o representante adjunto do secretário-geral da ONU no Afeganistão, Ramiz Alakbarov. “Com poucas reservas financeiras, as pessoas são forçadas a recorrer ao trabalho infantil, ao casamento infantil, à migração irregular de risco, expondo-as ao tráfico e a outros perigos a sua proteção. Muitos estão assumindo níveis catastróficos de dívida e vendendo seus bens.”

Akhundzadah, pai de quatro filhos, também espera emigrar. Mas, assim como seus colegas de profissão, ele disse que não trabalhou para governos estrangeiros e não tem como ser retirado do país. A universidade está fechada. Os bancos estão fechados. Ele está procurando por empregos de pesquisa no exterior. Mas, por ora, não há voos comerciais para fora do país. “Até agora, estou bem”, disse ele ao telefone. “O futuro é incerto. Vai ser difícil viver aqui.” 

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