Fracasso da China em estimular demanda é um alerta

Pequim adotou política diferente do Ocidente na crise da covid-19. Optou por apoiar as empresas, e não a renda dos trabalhadores. O resultado foi uma queda na demanda das famílias. Isso pode acontecer também no Ocidente, quando o apoio à renda for retirado 

A China foi o primeiro país a ser atingido por uma epidemia que, desde então, afetou o mundo todo. Foi também o primeiro a ter de administrar sua economia em meio a um regime de confinamento e a planejar uma recuperação a partir da desestabilização gerada pelo coronavírus. A maneira como fez isso traz lições importantes. 

Os governos ocidentais adotaram até agora um enfoque diferente do de Pequim para tratar as consequências econômicas da pandemia. Eles gastaram centenas de bilhões de dólares para sustentar a renda dos cidadãos – no caso da Europa, cobrindo parte dos salários para os empregadores que mantiverem o emprego dos funcionários; nos EUA, ampliando radicalmente o seguro-desemprego. Já a reação da China, intensiva em crédito barato, investimento público e gastos com construção, se concentrou muito mais em ajudar as empresas, não os trabalhadores. 

Em decorrência disso, apesar da recuperação da produção, a demanda decorrente do consumo privado e mesmo dos investimentos privados ficou para trás. Apesar de as pessoas de alta renda terem saído em grande medida ilesas dessa que foi a primeira recessão da China desde a década de 1970 e estarem alimentando uma alta na demanda por produtos de luxo, isso não neutraliza os efeitos dos cortes verticais de gastos adotados pela maioria dos consumidores comuns. As vendas do varejo continuam encolhendo, em contraste com as economias europeias, onde a atividade do varejo já supera os níveis anteriores ao da epidemia. 

Esse é um dos alertas para os países mais ricos. Seus programas de licença remunerada e de apoio à renda tiveram sucesso em mitigar as consequências econômicas desiguais da pandemia. Mas, ainda assim, aqueles com renda menor enfrentaram, de modo geral, riscos econômicos (e de saúde) maiores do que os mais bem remunerados. 

Essa disparidade vai se acentuar quando os governos forem obrigados a retirar gradualmente os subsídios públicos, seja devido a seu custo ou por eles desacelerarem a volta dos trabalhadores a seus empregos antigos ou a mudança para novos. Os problemas enfrentados pela China para impulsionar a demanda mostram o risco macroeconômico de uma estratégia de saída mal feita das medidas extraordinárias de apoio à renda. 

A dependência de Pequim do crédito e dos gastos com investimentos públicos também representa um problema de mais longo prazo para seu próprio objetivo de reequilibrar a economia chinesa na direção de um modelo de crescimento puxado pelo consumo privado. As autoridades chinesas sabem há muito que o crescimento impulsionado pelas exportações já esgotou suas funções e que o crescimento intensivo em investimentos criou grandes riscos financeiros. Sem políticas voltadas para melhorar o poder de compra e a confiança em grandes parcelas da população, porém, elas acabaram por recorrer de novo a instrumentos antigos e ultrapassados. 

Embora essa situação difícil pareça, à primeira vista, peculiar à China, a demanda fraca das famílias se tornou, cada vez mais, uma preocupação de longo prazo também para as autoridades ocidentais. Principalmente nos EUA, a renda há muito estagnada dos segmentos de salários menores é muitas vezes considerada como causa da “estagnação secular” – o crescimento anêmico da produtividade e uma economia apenas capaz de garantir pleno emprego com condições financeiras cada vez mais frouxas, e com todos os riscos e distorções que isso envolve. 

As medidas extraordinários de política pública adotadas neste ano pelas economias ricas foram urgentes e necessárias diante da pandemia. Quando elas forem gradualmente retiradas, os governos terão de estudar como substituí-las por reformas mais amplas, a fim de enfrentar a estagnação de longo prazo do crescimento da produtividade. As atuais dificuldades da China mostram não apenas o risco de fracassar no apoio ao ganha-pão das pessoas ao longo da crise como também o quanto o poder de compra das famílias, em processo de estagnação, pode enfraquecer os alicerces de uma economia no longo prazo. Essas são lições que os governos ocidentais deveriam levar em consideração num momento em que sua atenção se desvia do enfrentamento de uma emergência para “uma reconstrução para melhor”. (Financial Times) 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/08/24/fracasso-da-china-em-estimular-demanda-e-um-alerta.ghtml

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