Hoje, o mundo todo assiste a mais de 1 bilhão de horas de vídeo todos os dias no YouTube, segundo o Google. É como se todos os 7,5 bilhões de habitantes da Terra tivessem uma cota diária de oito minutos de vídeos no serviço. Se a estatística considerar só os conectados – cerca de 3,4 bilhões de pessoas, segundo a União Internacional de Telecomunicações –, essa taxa salta para 17 minutos de vídeo por dia.
O serviço de streaming Netflix exibe séries e filmes por 116 milhões de horas todos os dias, enquanto a ferramenta de vídeo ao vivo do Facebook registra o consumo de mais 100 milhões de horas de vídeo diárias. As métricas das três empresas mostram o potencial da internet para o consumo de vídeos e como isso pode mudar profundamente nossa relação com a TV na próxima década.
Os números do vídeo online são tão impressionantes, que levaram Reed Hastings, presidente executivo da Netflix, a fazer uma previsão ousada. “Em dez ou 20 anos, 90% do que as pessoas vão assistir estará online”, disse ele na feira de tecnologia Mobile World Congress, realizada no fim de fevereiro em Barcelona, na Espanha, como mostrou artigo de Bruno Capelas, publicado no Estadão de 12/03
Nos Estados Unidos, há anos se discute um fenômeno chamado “cord cutter” (cortar o cabo, em tradução literal), que dá nome a um tipo de usuário que deixa de pagar pela TV por assinatura para assistir a vídeos apenas pela internet, seja em sites gratuitos, como o YouTube, ou serviços de streaming, como Netflix. Controverso, o conceito pode ganhar força com um novo tipo de serviço, oferecido por grupos como a operadora AT&T (DirecTV Now) e o próprio YouTube (YouTube TV).
Por uma assinatura mensal em torno de US$ 40, usuários podem assistir a um pacote de canais, como acontece hoje na TV paga, em transmissões em tempo real ou escolhendo vídeos sob demanda. A diferença? Tudo acontece pela internet, sem necessidade de cabos, antenas, satélites ou de visitas de instalação. “O YouTube TV é a TV reimaginada para a geração YouTube”, disse Christian Oestlien, diretor de produto do YouTube, ao anunciar a plataforma, em fevereiro. Os dois serviços estão disponíveis só nos EUA.
Por enquanto, porém, parece precipitado afirmar que todos estão “cortando” a TV paga. Hoje, a TV ainda é importante no entretenimento do País: segundo dados da Kantar Ibope Media, o brasileiro assistiu no ano passado, em média, 6 horas e 17 minutos de televisão por dia, entre TV aberta e fechada.
Recentemente, a TV paga tem perdido assinantes no País, segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Porém, a queda acontece em tecnologias mais simples, como parabólicas e cabo, que sofrem cortes na crise econômica. Para Oscar Simões, presidente da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), o momento é de renovação, mas há espaço para a TV paga.
“Haverá uma coexistência: hoje, já temos 35 canais pagos no Brasil que também oferecem streaming, vinculados à assinatura de TV”, diz Simões. Há quem discorde. “O modelo dos pacotes com inúmeros canais não fica mais de pé”, diz Mauro Garcia, presidente da Bravi, entidade que representa produtores brasileiros de audiovisual.
Em pesquisa global feita pela consultoria Nielsen no início de 2016, 72% dos entrevistados responderam que pagam por TV; apenas 26%, por sua vez, gastam com vídeo por demanda. “Para a maioria dos telespectadores, serviços tradicionais e vídeo online não são mutuamente excludentes, mas complementares”, diz José Calazans, consultor da Nielsen.
O mesmo estudo da Nielsen, porém, revela que um terço dos assinantes de TV paga pensa em trocar o serviço para apenas ver vídeos pela web. Essa fatia cresce entre os usuários de 15 a 20 anos (40%) e millennials (38%, de 21 a 34 anos), mas bem menor entre espectadores mais velhos – 15% entre usuários entre 50 e 64 anos e apenas 9% para quem tem mais de 65 anos. A intenção não se reverte, necessariamente, no fim da assinatura. Ainda assim, a disparidade impressiona.
“O jovem de hoje não entende o que é grade de programação. A criança simplesmente acessa o que quer ver no Netflix ou no YouTube”, explica Fábia Juliasz, diretora de medição da Kantar Ibope Media.
Hoje, esse público sintoniza o que pode ver de graça na web ou o pacote de TV paga dos pais. Em dez anos, não é difícil imaginar que poucos deles pagarão por TV por assinatura tradicional, mas poderão assinar serviço de vídeo pela internet. Nos EUA, esse grupo já ganhou nome: “cord never” – em tradução literal, “cabo, nunca”.
Para os analistas ouvidos pelo Estado, a forma de transmissão será menos importante que o conteúdo. “Hoje, a melhor tela para assistir vídeo é a que está mais perto”, diz José Calazans, da Nielsen.
O que o YouTube tem hoje parece uma boa prévia do futuro: uma biblioteca enorme de vídeos, que pode ser explorada via busca ou por meio da recomendação de algoritmos capazes de aprender com as preferências do espectador.
Nos próximos anos, cada pessoa será seu próprio programador de TV: elas vão montar uma sequência de vídeos personalizada, sem obedecer a uma estrutura generalista. “Ainda vai demorar um tempo, mas o consumidor é quem vai ditar as regras”, diz Mauro Garcia, da Bravi.
TV aberta faz testes com serviços próprios de streaming e YouTube. No momento em que se prepara para realizar uma grande transição no País – deixando de lado o sinal analógico e partindo em definitivo para o mundo digital, a televisão aberta também olha com atenção o universo das transmissões pela internet.
A Globo optou por fazer voo solo em 2015, com o Globo Play. O aplicativo tem alguns vídeos gratuitos, mas capítulos inteiros de novelas e programas são exclusivos para assinantes, a R$ 14,20 por mês. Desde seu lançamento, já foi baixado mais de 10 milhões de vezes, e chegou até a antecipar a exibição de programas como a série Supermax.
No mercado, havia o temor de que as operações se canibalizassem, mas não foi o que aconteceu – segundo a empresa, a TV aberta teve crescimento de 5% no alcance diário desde o lançamento do aplicativo. “O Globo Play funciona como uma nova janela para quem não pode assistir ao conteúdo na TV”, declarou um porta-voz da empresa ao Estado.
Já o SBT tem apostado forte no YouTube, com mais de 40 canais dedicados a programas no site. O principal canal reúne mais de 3 milhões de usuários inscritos – que podem assistir aos programas um dia após sua exibição. “Nossa intenção é colocar todo o conteúdo premium numa rede de streaming paga”, diz Rodrigo Marti, diretor de multiplataformas do SBT.
Para Marti, a internet ameaça menos a TV aberta do que a TV paga. “Somos um meio de entretenimento muito barato: basta comprar uma televisão e sintonizar os canais”, diz.