Pedro de Santi
Na semana posterior à do Dia Internacional da Mulher, trago uma reflexão sobre o homem.
Recebi a encomenda de escrever sobre o homem do século 21 para uma revista. De bate pronto, minha resposta foi: não existe o ‘homem’ do século 21, da mesma forma que não há a ‘mulher’ ou o ‘jovem’. ‘Millenials’ é um daqueles termos forçados, como geração isto ou aquilo. Não é possível trabalhar com este nível de generalização. Não há resposta minimamente satisfatória, em termos de alcance geral. Só podemos observar retratos singulares, cuja soma talvez indique uma direção.
Se isto é sempre verdade, pelas inúmeras nuanças e singularidades sociais e pessoais, a tarefa de definir identidades parece estar se tornando ainda mais difícil nas últimas décadas. Ao menos nos grupos representados por universitários mais próximos de nosso convívio, passou a ser um valor a liberdade de não ser enquadrado em qualquer categoria definitiva.
Onde esteve a cultura de massa clássica do século 20- onde só se podia aderir á massa ou ser subversivo- passamos ao tribalismo da virada do século- onde cada um podia encontrar uma tribo com a qual mais identificasse. E, desde então, parece que temos mais uma modulação: a circulação entre tribos, o que parece incluir a identidade de gêneros. Recentemente, uma ex-aluna fez um post genial, dizendo: “ao preencher algum formulário, quando vejo a campo ‘gênero’ tenho vontade de responder: drama e comédia”. É uma forma espirituosa de expressar que as categorias disponíveis não correspondem às experiências contemporâneas de identidades móveis.
Tudo isto para dizer: não há o homem do século 21, como não há a mulher ou o jovem.
Mas talvez possamos observar alguns retratos de homens atuais, sem pretender abrangência totalizante. Vou esticar alguns destes retratos, sob a forma de caricaturas, para evidenciar alguns traços.
A primeira imagem que me ocorre é a de um homem acuado pelo empoderamento feminino e LGBT.
O feminismo deve ter mais de cem anos, e já tomou inúmeros aspectos. Não há um só feminismo, também. Hoje, ele está focado na resistência contra a opressão machista. Fala-se mais sobre a violência que segue sendo exercida sobre a mulher do que sobre a mulher, propriamente. Ele é bastante combativo e se organiza em coletivos. Amparadas por eles, observamos de forma inédita mulheres denunciarem violências de todas as formas sofridas por elas. A opressão sofrida individualmente numa sociedade machista conduz ao silêncio, com a vítima desacreditada de que haveria acolhimento, legitimização de sua palavra ou consequências derivadas de sua denúncia. Mas isto muda numa condição coletiva. Este movimento é imprescindível, para qualquer pretensão verdadeira de cidadania.
Mas um dos efeitos da força desta modalidade de feminismo é que ele pretende haver atributos intrínsecos ao feminino e ao masculino, como se se tratassem de substâncias puras, distintas e incomunicáveis, em última instância. Isto parece insustentável sob qualquer aspecto e não combina com a maleabilidade reclamada no século 21, como dissemos acima. A título de defender a mulher, ele acaba por reproduzir e eternizar preconceitos sobre ambos os gêneros. Além disto, muitas vezes existe uma confusão entre ‘machismo’ e ‘homem’. Onde estava a luta justa contra o machismo, passa a estar uma aversão ao homem, como se o machismo fosse exercido por todos os homens ou exclusivamente por eles.
O homem representa a figura do opressor, que impunha (impõe) seu modelo ao universo feminino e LGBT.
Mas quando, ao final de 2015, se espalhou pelas redes a hashtag #meuamigosecreto, com a denúncia de machismo velado em gestos cotidianos, muitas mulheres diziam que “meu amigo é secreto” era uma amiga ou colega de trabalho. O machismo também é sustentado por mulheres.
Sem dúvida, existe ainda o homem troglodita, portador de violência física e sexual, que se expressa diretamente nos lares e ruas. Este tipo sempre existiu e se reanimou num ambiente mundial de conservadorismo crescente. Mas ele também aparece mal disfarçado sob uma generosidade superior, como acabamos de testemunhar em discursos lamentáveis de presidentes no Dia Internacional da Mulher. Este troglodita envergonhado considera ser muito bonzinho por ter deixado a mulher votar e trabalhar, além de pesquisar preços em supermercados; tolo e lamentável. Quando acha estar elogiando a mulher, ele só consegue explicitar sua desqualificação.
Mas esta posição de troglodita não corresponde a de todos os homens. Muitos, assustados, não sabem mais como se portar diante ante as mulheres, com medo de passar por estupradores – caso manifestem seu desejo- ou frouxos, caso se intimidem e se recolham. Muitos homens do século 21 estão na defensiva, sem encontrarem um lugar novo para si.
Num debate no ano passado, era discutida a questão da intolerância, num viés político partidário. A discussão enveredou para a questão de gênero. Então, um aluno sentado no fundo da sala, e até então calado, pediu a palavra e disse estar perdido. Ele se apresentou como branco, de classe media e heterossexual e ouvia sem parar que aqueles atributos caracterizam o opressor. Angustiado, ele perguntava: “o que é que eu sou?” Foi então que propus a ele a expressão ‘Homem Glutem’. O glutem parece ser hoje o vilão escolhido das dietas, o significante glutem pode representar tudo o que há de ruim. Os homens, confrontados com este estigma, não têm como se sentir confortáveis, e ficam acuados.
Mas há também outros retratos disponíveis de homens atuais. Uma vez mais através de mídia social, encontrei um post expressivo de outra amiga, desconcertada. Ela dizia: “virei para o meu gato e disse, ‘me dá um beijo’, ele permaneceu imóvel onde estava e respondeu tranquilo, ‘tô de boas'”.
Quando parei de rir, pensei que este pode ser um indício do além do homem. Com a emancipação definitiva das mulheres, os homens talvez possam também se emancipar das posições que o definiam e aprisionavam: como a urgência de seu desejo sexual e a necessidade de provar ser macho ante a demanda de uma fêmea.
O ‘tô de boas’ pode ser o pós troglodita e aquele que não está acuado pela negatividade do homem glutem.