Europa duvida de volta da antiga aliança com EUA

A identidade do vencedor na eleição presidencial dos EUA é especialmente importante para os dirigentes europeus. Mas eles não parecem apostar num retorno aos velhos tempos com Washington, mesmo com uma vitória do democrata Joe Biden. 

Nas capitais europeias, a ideia que prospera é uma estratégia de autonomia, tirando lições de quatro anos de disrupção provocada pelo presidente Donald Trump. Ou seja, uma Europa menos dependente de Washington, que procura consolidar um tímido movimento em favor de sua soberania, paralelamente à gestão de uma relação complicada com os EUA. Mas isso é mais aspiração do que realidade, afirmam certos analistas. 

Como constata o jornal “The New York Times”, a Europa se questiona se pode contar com os EUA de novo, como antes. Mesmo se a civilidade puder ser restaurada com os democratas na Casa Branca, os laços fundamentais de confiança foram quebrados, e a política externa, sem consenso entre republicanos e democratas, não é mais confiável. 

Na avaliação de Thierry de Montbrial, diretor do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), os próximos anos serão agitados nos EUA, e a dependência da política externa em relação à política interna tem poucas chances de se distender. 

“Muitos europeus querem crer que com o ex-vice-presidente de (Barack) Obama vamos retornar ao bom tempo de entendimento transatlântico e do multilateralismo”, escreveu Montbrial. “Em aparência, talvez, mas em aparência apenas. Porque a deriva dos continentes começou com a emergência do mundo pós-soviético. E essa deriva se explica por fatores objetivos, como a ascensão da China e o rebaixamento da Rússia.” 

Para Montbrial, um presidente que não seja Trump na Casa Branca poderá talvez acalmar as feridas na relação bilateral, mas não mudar o curso das coisas. 

Obcecados pela situação interna e pela ameaça da China, os EUA vão prosseguir seu desengajamento, obrigando a Europa a se emancipar, acredita o diplomata Jean- David Levitte, ex-sherpa (representante pessoal em negociações de cúpula) dos ex-presidentes franceses Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy. 

Para o diplomata, a principal orientação na política externa americana – que não mudará, mas sim se aprofundará nos próximos anos – é a nova Guerra Fria com a China. Os EUA não querem e não podem aceitar que a China se torne a primeira potência mundial, diz. 

Mas Levitte tampouco crê que haverá mudança na tendência ao recuo americano de conflitos onde o Exército dos EUA está engajado, e que não são de interesse vital para Washington, com exceção do Mar da China meridional e do estreito de Taiwan. O recuo americano “vale também” para os mercados da Europa. “Estamos sozinhos face a Vladimir Putin e (o presidente turco, Recep Tayyip) Erdogan, na Bielorússia ou no Mediterrâneo oriental”, acrescenta Levitte. 

Se Trump ganhar um segundo mandato, o temor é de que ele acabe por redobrar a força de sua agenda unilateral. Sua abordagem tem sido tratar os aliados como competidores, rivais ou inimigos. O ceticismo, e até mesmo a hostilidade, em direção da União Europeia (UE) pode se intensificar. 

Se o vencedor for Biden, os EUA podem voltar a trilhar o multilateralismo à la carte, ou seja, no que interessa os americanos. Um mínimo de entente euro-americana é necessário para que os países ocidentais afrontem o desafio da ascensão de potências não liberais. 

O risco de uma guerra tarifária entre EUA e UE pode se dissipar, com as tensões bilaterais voltando a ser um pouco mais controladas. 

Com Biden, os EUA podem voltar imediatamente ao Acordo de Paris de combate a mudanças climáticas. E, como a UE, a Casa Branca vai querer estabelecer a “taxa carbono” de fronteira, para punir países poluidores que resistem a descarbonizar suas economias. 

Por outro lado, seja com Trump ou com Biden, em algum momento a Europa pode ser cobrada por Washington em relação à China. Os europeus resistem a uma postura mais incisiva sobre Pequim, levando em conta que os chineses são o segundo maior parceiro comercial do mercado comum europeu, depois dos EUA. 

Para Jean Pisane-Ferry, do Instituto Bruegel, em Bruxelas, “o comportamento de Trump tornou mais fácil para os aliados dos EUA adiarem escolhas difíceis”. 

“Os EUA liderados por Biden podem parecer um parceiro familiar para a maioria dos líderes europeus. Mas, se eles forem chamados a tomar partido no confronto com a China, a Europa não seria mais capaz de adiar o momento em que terá de tomar suas próprias decisões”, acrescenta. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/11/03/europa-duvida-de-volta-da-antiga-alianca-com-eua.ghtml

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