EUA recuperam espaço perdido para China no Sudeste Asiático

Na manhã do domingo, o primeiroministro da Malásia, Anwar Ibrahim, sentiu-se à vontade o suficiente na presença do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para fazer uma piada à custa do americano, famoso por se ofender com facilidade.

“Temos muitas coisas em comum. Eu estive na prisão, mas você quase chegou lá”, disse Anwar a Trump, em uma referência aos nove anos que passou preso e à condenação do presidente dos EUA por 34 crimes, no ano passado.

A brincadeira de Anwar refletiu uma cordialidade entre eles, resultante do fato de a Malásia ter estendido o tapete vermelho para Trump em sua primeira viagem à Ásia do segundo mandato – um período que tem sido marcado pela tensão geopolítica crescente entre os EUA e muitos dos parceiros comerciais na região.

Caças da Malásia escoltaram o avião presidencial americano, o Air Force One, em sua chegada a Kuala Lumpur. Em seguida, Trump ocupou o centro das atenções e foi coberto de elogios durante a assinatura de um acordo de paz entre a Tailândia e o Camboja.

A adulação funcionou. Em menos de duas horas, os EUA assinaram uma série de acordos comerciais a respeito de minerais cruciais com membros do bloco de 11 países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean).

Com uma população total de cerca de 680 milhões de habitantes, a Asean tem uma das classes médias que crescem mais rápido e acreditase que se tornará a quarta maior economia global até 2030.

“Nossa mensagem para os países do Sudeste Asiático é que os EEUA estão 100% com vocês e pretendemos ser um parceiro forte por muitas gerações”, disse Trump aos demais governantes.

Mas as palavras do presidente americano oferecem um contraste gritante com a maneira como seu governo é visto por muitos nos países do Sudeste Asiático, que no começo estavam entre os mais prejudicados por suas tarifas e pelos cortes na ajuda externa dos EUA.

“As tarifas certamente tiveram um impacto no prestígio dos Estados Unidos no Sudeste Asiático. Não há nenhuma dúvida sobre isso”, afirmou o primeiro-ministro de Cingapura, Lawrence Wong, na semana passada.

Enquanto a preocupação sobre se os EUA cresceu este ano, a China redobrou as iniciativas para ampliar sua esfera de influência. Os países da região, que durante décadas permaneceram próximos de Washington, têm encontrado um parceiro mais confiável em Pequim com mais frequência.

Embora costume ser ofuscado por seus vizinhos maiores, o Sudeste Asiático tornou-se uma das regiões mais importantes nas cadeias mundiais de manufatura e fornecimento de bens essenciais, desde semicondutores e veículos elétricos até produtos petroquímicos e farmacêuticos – muitos dos quais acabam nos EUA.

Embora costume ser ofuscado por seus vizinhos maiores, o Sudeste Asiático tornou-se uma das regiões mais importantes nas cadeias mundiais de manufatura e fornecimento de bens essenciais, desde semicondutores e veículos elétricos até produtos petroquímicos e farmacêuticos – muitos dos quais acabam nos EUA.

“Os países do Sudeste Asiático se veem diante da dura realidade de que talvez seu instinto preliminar de se proteger e trabalhar tanto com os EUA quanto com a China não é sustentável”, avalia Evan Laksmana, pesquisador do Shangri-La Dialogue para a segurança e a defesa do Sudeste Asiático no Institute for Strategic Studies.

A Asean foi criada em 1967 por Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia como baluarte contra a expansão do comunismo na Ásia. Desde seus primeiros dias, o bloco manteve laços estreitos com os EUA e tem sido usada para fortalecer as relações comerciais, de investimento e de defesa entre os aliados. Washington encarava a Asean como ferramenta para limitar a influência chinesa.

Barack Obama foi um de seus maiores apoiadores e participou de mais reuniões da associação do que qualquer outro presidente americano. Em 2011, Obama afirmou que os EUA se concentrariam em fortalecer sua presença na região da Ásia-Pacífico e dariam mais prioridade à região do que a seus laços de longa data com a Europa e o Oriente Médio.

Mas desde que Obama deixou o cargo, nove anos atrás, houve apenas três participações de presidentes americanos nas cúpulas da Asean: Trump em Manila, em 2017, Joe Biden em Phnom Penh, em 2022embora ele tenha recebido líderes da Asean nos EUA no fim daquele ano -, e Trump de novo na semana passada.

Para o estrategista geopolítico Parag Khanna, executivo-chefe da AlphaGeo, a origem da relação atribulada entre os EUA e o Sudeste Asiático foi a decisão de Trump de cancelar a adesão dos EUA à área de livre comércio da Parceria Transpacífico (TPP) no início de seu primeiro mandato.

O pacto tinha o objetivo de consolidar os laços entre os países da região em torno do Oceano Pacífico, inclusive Austrália, Malásia, Singapura e Vietnã. Menos de 100 horas depois de tomar posse, Trump retirou os EUA de um acordo comercial que demorara dez anos para ser elaborado.

“Na região, a percepção de que não se pode confiar nos EUA vem dessa época”, diz Khanna. “Os EUA são muito mais multialinhados para garantir que consigam o melhor acordo para eles.”

Desde então, os membros da Asean – junto com China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia – formaram a Parceria Econômica Regional Abrangente, o maior bloco comercial da história. Apesar de suas origens como uma iniciativa da Asean, a China se tornou a potência dominante no bloco.

Mesmo assim, ainda existem laços profundos entre os EUA e a Asean. Os EUA são a maior fonte de investimento direto estrangeiro da Asean, responsáveis por US$ 74,4 bilhões em 2023 – ano dos últimos dados disponíveis -, o equivalente a um terço das entradas do exterior. Em comparação, a China respondeu por US$ 17,5 bilhões, a terceira maior entrada, atrás da União Europeia.

Mais de 6 mil empresas americanas operam na região e o comércio com o Sudeste Asiático sustenta 625 mil empregos nos EUA. No ano passado, os EUA ultrapassaram a China como o maior mercado de exportação da Asean por um breve período.

Mas o regime de tarifas de Trump ameaça desmantelar esses estreitos laços comerciais e empresariais. O Sudeste Asiático foi um dos mais afetados pelas taxas, e países como o Vietnã e o Camboja ouviram que poderiam esperar alíquotas de 46% e 49%, respectivamente. Os dois são fornecedores importantes de calçados e vestuário para os EUA. Segundo analistas, a “Ásia manufatureira” foi duramente atingida por medidas que minaram a estratégia “China mais um” usada por empresas para estabelecer polos de manufatura alternativos na região.

Durante os meses de negociações que se seguiram, a maioria dos países do Sudeste Asiático conseguiu reduzir sua alíquota básica para cerca de 19%, mas a experiência dolorosa os levou a perderem a confiança nos EUA. Ao mesmo tempo, a atitude inflexível do governo Trump sobre o alegado redirecionamento de produtos chineses via Sudeste Asiático também pode ter um forte impacto. Os EUA ameaçaram impor tarifas de 40% sobre as chamadas mercadorias “transbordadas”

Por meio das tarifas, Trump pretende forçar os países da Asean a reduzirem a dependência da China – uma tarefa difícil, já que a região importa da China a maioria das matérias-primas e dos bens intermediários usados para a produção.

“As tarifas de reexportação são uma questão realmente séria”, afirma Gaurav Ganguly, chefe de economia internacional da Moody’s Analytics. “No curto prazo, é provável que elas criem problemas enormes para as cadeias de fornecimento do Sudeste Asiático.”

Outro grande golpe para os países do Sudeste Asiático foi a decisão de Trump de acabar com a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), que destinou mais de US$ 837 milhões a membros do bloco no ano passado e financiou uma ampla gama de projetos, que vão desde atividades de prevenção da malária até o combate ao tráfico de pessoas e a remoção de minas terrestres. Por mais de seis décadas, a Usaid foi uma ferramenta crucial nas iniciativas dos EUA para impedir a expansão do comunismo e da influência chinesa.

O interesse de Trump no Sudeste Asiático parece limitado. Isso mudou por algum tempo no fim de julho, quando um violento conflito eclodiu na fronteira entre a Tailândia e o Camboja. Trump viu nisso uma oportunidade de reforçar suas credenciais como o “presidente da paz”. Enquanto Anwar, na Malásia, se preparava para sediar negociações entre os líderes da Tailândia e do Camboja para um cessar-fogo, o republicano ligou para eles e ameaçou suspender negociações comerciais se não aceitassem uma trégua.

Como Washington se tornou em parte indiferente ao Sudeste Asiático, Pequim percebeu uma oportunidade de solidificar sua influência. A China é o maior parceiro comercial da Asean desde 2009. E é uma das principais fontes de investimento direto estrangeiro, em particular nas áreas de níquel e baterias para veículos elétricos.

A Iniciativa do Cinturão e da Rota de Pequim também foi crucial para consolidar a posição da China na região como um parceiro importante para o desenvolvimento de projetos de infraestrutura.

De acordo com uma enquete realizada com profissionais pelo Instituto Iseas-Yusof Ishak, de Cingapura, a China continua a ser a potência econômica e político-estratégica mais influente na região. Mas este ano os EUA passaram à frente da China e se tornaram a opção predominante no caso de que a região seja obrigada a se alinhar a um dos dois rivais estratégicos. A enquete foi feita em janeiro e fevereiro, antes do anúncio das novas tarifas e dos cortes da Usaid.

Apenas alguns dias depois de Trump anunciar suas tarifas, em abril, o presidente da China, Xi Jinping, visitou vários países da região, ao perceber mais uma chance de promover seus interesses. Ele viajou para Vietnã, Malásia e Camboja, onde defendeu o multilateralismo e a cooperação com os países em desenvolvimento, além de advertir contra o protecionismo – em nítido contraste com Trump.

“A guerra comercial e tarifária não terá vencedores e o protecionismo não levará a lugar nenhum”, escreveu Xi em uma coluna na imprensa vietnamita em abril.

Não é só para a China que os países do Sudeste Asiático se voltam na busca de alianças mais estreitas. O protecionismo crescente dos EUA obrigou muitos deles a tentar acordos de livre comércio com países e blocos de fora da região, inclusive o Mercosul.

“Isso mostra o quanto a Asean é versátil”, disse Kishore Mahbubani, exrepresentante de Singapura na ONU. “A Asean sabe como se adaptar e ser flexível conforme os ventos geopolíticos mudam.” (Tradução de Lilian Carmona.)

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2025/10/29/trump-tenta-recuperar-espaco-perdido-para-china-no-sudeste-asiatico.ghtml

Deixe um comentário