EUA e China seguem se distanciando

Quando o presidente dos EUA, Donald Trump, golpeou a China com tarifas pela primeira vez, há mais de um ano, ele mirava objetivos transacionais bem definidos: um déficit comercial bilateral menor e um tratamento melhor para as empresas americanas na China.
Mas, desde então, a guerra comercial virou um conflito ideológico mais amplo e profundo. Os acontecimentos da semana passada indicam que as duas superpotências econômicas, embora tenham acertado uma trégua na disputa comercial, estão cada vez mais perto de uma nova guerra fria.
De 2001, quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC), até 2017, EUA e China avançaram em direção a uma maior integração e engajamento. Os céticos sobre esse processo se dividiam em três campos: os linhas-dura da economia, descontentes com o tratamento que a China dava a empresas estrangeiras, os linhas-dura da segurança, que suspeitavam dos propósitos geopolíticos chineses, e os linhas-dura na questão dos direitos humanos, atentos e preocupados com a intolerância chinesa à democracia e às dissidências. Historicamente, esses três campos costumam estar separados e ser influentes só de maneira intermitente.
Os eventos do ano passado mudaram isso. O desencanto das empresas com o mercado da China e a guerra comercial de Trump deram poder aos linhas-dura da economia. Eles juntaram forças com os linhas-dura da segurança, que consideram a rivalidade econômica e a rivalidade militar com a China como indissociáveis. Já o tratamento dado pela China à sua minoria muçulmana em Xinjiang, a empresas ocidentais rebeldes, como a NBA (National Basketball Association), e os protestos de Hong Kong deram mais voz aos linhas-dura dos direitos humanos.
Os eventos da última semana ilustram de forma muito clara como essa oposição generalizada está ampliando a separação entre os dois países. O chamado miniacordo comercial é mais notável pelo que não fez: reverter quaisquer tarifas. Ele só adiou os aumentos nas tarifas anunciados há apenas dois meses. A China concordou em retomar as compras de produtos agrícolas americanas, mas tem sido vaga sobre volumes e prazos.
Há um ano, o consenso entre analistas externos era que China e EUA chegariam a um amplo acordo que resolveria suas principais divergências porque era de interesse mútuo. Agora, o consenso é que não vão chegar a esse acordo.
“Acho que os chineses realmente não acreditam que um acordo pleno é possível”, disse Scott Kennedy, especialista em China do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. “Não só [China e EUA] têm uma confiança limitada um no outro, como nenhum dos lados parece estar numa posição de precisar desesperadamente de um acordo.”
Arthur Kroeber, chefe de pesquisa da Gavekal Dragonomics, consultoria focado na China, escreveu em relatório que nenhum acordo eventual incluirá “medidas substanciais que obriguem a China a mudar as principais práticas econômicas que
os EUA consideram condenáveis” ou “diminuam os esforços em andamento dos EUA para restringir o fluxo de tecnologia americana para a China”.
Para sublinhar esse último ponto, na semana passada os EUA acrescentaram 28 entidades chinesas – incluindo 8 empresas de inteligência artificial – à lista negra que corta seu acesso a fornecedores americanos de insumos cruciais, por causa da repressão de Pequim à minoria muçulmana na região de Xinjiang. “Não me lembro de nenhuma ocasião em que a lista de entidades tenha sido usada para defender uma agenda de direitos humanos”, disse Dan Rosen, analista no Rhodium Group.
Rosen encara isso como uma prova da influência crescente dos linhas-dura no sistema de segurança nacional profissional que há muito tempo tentam “fixar o claro sentimento de contraste entre os valores americanos e chineses”.
A controvérsia da NBA alimentou ainda mais o argumento dos linhas-dura de que os sistemas dos EUA e da China são incompatíveis. Depois que Daryl Morey, gerente- geral do time de basquete Houston Rockets, da NBA, apoiou os manifestantes de Hong Kong no Twitter, as lojas online chinesas retiraram os produtos do time, a TV chinesa parou de exibir seus jogos e seus parceiros empresariais chineses suspenderam a cooperação.
Morey apagou a postagem e pediu desculpas, a NBA classificou seus comentários de “inapropriados” e a estrela do Los Angeles Lakers, LeBron James, disse que Morey
estava “mal informado”. Esse recuo desencadeou uma reação negativa tanto de democratas como de republicanos, para quem a China estava usando sua influência econômica para censurar a liberdade de expressão dos americanos. O senador republicano Marco Rubio acusou a NBA de sacrificar Morey “para agradar ao governo comunista chinês”.
Rubio, firmemente inserido nos três campos de linhas-dura, personifica a mudança na opinião pública americana que impede um retorno ao status quo anterior a 2018. Ele alertou o governo para o risco de relaxar as restrições contra empresas chinesas acusadas de roubar tecnologia dos EUA ou espionar americanos, pressionou o fundo de pensão dos servidores federais a desinvestir de ações chinesas e patrocinou projeto de lei bipartidária que vincula o tratamento econômico favorável dado a Hong Kong à continuação de sua autonomia em relação a Pequim e ao respeito às liberdades civis, aprovada na Câmara nesta semana. A China ameaçou retaliar isso.
Essa pressão dificulta para o governo relaxar as restrições impostas à China, de controles de exportação mais duros à inclusão de empresas em listas negras, o que neste momento pode ser uma barreira maior do que as tarifas. Daniel Ahn, economista-chefe dos EUA no BNP Paribas, estimou a contribuição dessas restrições para a queda no comércio entre China e EUA e converteu essa consequência num equivalente tarifário. Somando todas as tarifas que já foram impostas, a tarifa efetiva sobre a China é de 28%, em comparação a 4% logo após sua adesão à OMC.
Portanto, não se deixe enganar pelo miniacordo comercial. Sob a superfície, a separação entre os EUA e a China está aumentando.

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2019/10/17/eua-e-china-seguem-se-distanciando.ghtml

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