EUA e China começam a impor sua lei ao mundo

Uma pequena cidade na Alemanha recebe uma carta de senadores americanos que a ameaçam com “sanções legais e econômicas”. Professores em Oxford e Princeton dizem aos alunos que enviem seus ensaios anonimamente, para se protegerem de uma possível prisão por violar a lei chinesa. 

Bem-vindos ao mundo da extraterritorialidade. Os EUA e a China buscam estender cada vez mais o alcance de suas leis internas no exterior – ao obrigarem empresas e pessoas estrangeiras a seguirem as ordens de Washington ou Pequim. O avanço da extraterritorialidade é o sinal mais recente do triste declínio de nossa velha amiga, a ordem internacional baseada em normas, sob a qual as grandes potências ao menos fingiam obedecer às mesmas regras que todos os demais. 

No mundo extraterritorial, existe um conjunto de regras para as superpotências e outro para todos os demais. Isso se parece menos com o século 21, como imaginado por advogados especializados em Direito internacional, e mais com o século 19, no qual as potências imperiais impunham sua vontade aos outros países. 

Os EUA são os que foram mais longe no uso da legislação de extraterritorialidade. Sua arma mais importante não está à disposição de nenhum outro país: o status do dólar como reserva cambial mundial. Isso significa que estrangeiros usam o sistema financeiro americano com frequência e, portanto, tornam-se vulneráveis a processos sob as leis dos EUA. Também significa que os EUA podem ameaçar estrangeiros com sanções financeiras que têm alcance mundial. 

Mesmo durante os anos de Barack Obama na Presidência, os EUA usavam seu poder extraterritorial com crescente entusiasmo. Basta pensar nos muitos executivos do futebol mundial presos na Suíça em 2015 e extraditados para serem julgados nos EUA. O erro deles foi processar transações supostamente corruptas por meio de bancos americanos. 

O governo do presidente Donald Trump aderiu ao porrete das sanções com ainda mais entusiasmo. Após a repressão ao movimento pró-democracia em Hong Kong, os EUA puseram na mira a governadora de Hong Kong, Carrie Lam, e alguns de seus colegas. Lam já admitiu que tem tido dificuldade para usar cartões de crédito. 

A Rússia também é alvo de sanções dos EUA, e é por isso que o porto alemão de Sassnitz entrou em cena. Navios russos que trabalham na conclusão do polêmico gasoduto Nord Stream 2 para a Alemanha têm atracado lá. Isso atraiu a atenção dos senadores Tom Cotton, Ted Cruz e Ron Johnson, que no mês passado enviaram uma carta à cidade e a uma empresa alemã envolvida no projeto com ameaças de sanções. O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, alertou as empresas envolvidas no Nord Stream: “Saiam agora ou arquem com as consequências.” 

Os políticos alemães estão indignados com essa pressão – mas também estão preocupados. A lei americana é suficientemente vaga para tornar qualquer banco ou escritório de advocacia alemão envolvido no Nord Stream potencialmente vulnerável a processos judiciais nos EUA. 

Talvez a mais espetacular aplicação extraterritorial da legislação de sanções americana pelo governo Trump tenha sido a prisão de Meng Wanzhou, diretora financeira da chinesa Huawei Technologies, que foi detida no Canadá por supostos delitos relacionados às sanções impostas pelos EUA ao Irã. A Huawei também foi atingida por leis americanas que impedem a venda de chips de computador americanos para a gigante tecnológica chinesa. Isso tornará muito mais difícil para a Huawei a tarefa de disseminar sua tecnologia 5G no mundo inteiro. 

O próprio conceito de extraterritorialidade é altamente delicado na China, por causa de suas reverberações do século 19, quando muitos estrangeiros viviam sob suas próprias leis em cidades chinesas como Xangai. 

Mas nos dias de hoje a China não está mais na extremidade meramente receptora da legislação extraterritorial. Os termos de sua nova lei de segurança nacional são tão vagos e abrangentes que ela potencialmente torna até estrangeiros que se manifestam no exterior vulneráveis a processos criminais por “subversão” na China. 

As universidades ocidentais estão levando a ameaça a sério. Patricia Thornton, que leciona política chinesa na Universidade de Oxford, tuitou recentemente: “Meus 

alunos vão encaminhar e apresentar trabalhos de forma anônima”, como proteção contra a lei. Professores das universidades americanas anunciaram medidas semelhantes. 

O principal temor é que alunos chineses possam ser denunciados e perseguidos por se desviarem da linha oficial de Pequim – por exemplo, a respeito de Taiwan, Hong Kong ou Xinjiang. Esse risco só aumentou com a realização de seminários online, que podem ser gravados. Alguns acadêmicos e membros de centros de análise e pesquisa ocidentais também estão preocupados com a própria segurança, e têm se recusado a viajar para a China. 

As incursões de Pequim na extraterritorialidade começaram com a liberdade de expressão, mas é pouco provável que terminem aí. Imitando os EUA, a China agora trabalha em sua própria lista de “entidades não confiáveis” voltada contra empresas estrangeiras acusadas de pôr em risco a segurança nacional chinesa. 

Os EUA, e talvez a China, têm o poder de garantir o cumprimento de suas leis no mundo inteiro. Para potências de médio porte, essa opção não existe. Em vez disso, países de menores dimensões têm de dar sustentação a órgãos legislativos internacionais, como a Organização Mundial de Comércio (OMC) – que de vez em quando toma decisões tanto contra a China quanto contra os EUA. 

Sem regras internacionais conjuntas, terceiros países podem se ver cada vez mais divididos entre as exigências extraterritoriais concorrentes de Washington e de Pequim. Nessa situação, nosso mundo vai se parecer cada vez mais com o descrito pelo historiador grego Tucídides, no qual “os fortes fazem o que querem e os fracos sofrem o que devem”. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/09/22/eua-e-china-comecam-a-impor-sua-lei-ao-mundo.ghtml

Comentários estão desabilitados para essa publicação