Joe Biden já tem um elogio favorito nos corredores da Casa Branca. Assessores próximos dizem que o presidente dos Estados Unidos comemora, mesmo que discretamente, quando ouve que sua largada tem sido mais ambiciosa que a de Barack Obama, de quem foi vice de 2009 a 2017.
Nos primeiros cem dias de seu governo, que serão completados nesta quinta-feira (29), Biden sinalizou o desejo de ser um dos presidentes mais transformadores da história americana. Mas, para isso, precisa fazer com que suas propostas ousadas se tornem marcas permanentes, reformulando o país em termos de desigualdade, acesso ao voto e papel do Estado no crescimento econômico.
A marca dos cem dias é recheada de simbolismo, geralmente sem grandes efeitos práticos. Neste ano, porém, com o adiamento causado pelas restrições da pandemia, a data vai praticamente coincidir com o primeiro discurso de Biden na sessão conjunta do Congresso, sua oportunidade de celebrar vitórias e elencar prioridades que podem desenhar o legado de sua Presidência.
Nesta quarta-feira (28), o democrata deve enumerar avanços de seu plano contra a Covid-19, que contou com a distribuição de mais de 200 milhões de vacinas em cem dias e freou o recorde de casos e mortes causadas pela doença no país. Com a urgência ecoada do Salão Oval, Biden alçou os EUA de desastre sanitário ao posto de um dos maiores sucessos de vacinação em massa do mundo e conseguiu apontar para uma recuperação econômica mais rápida com a aprovação de um pacote de alívio econômico no valor de US$ 1,9 trilhão, com auxílio específico aos mais vulneráveis.
Diante dos parlamentares, o presidente quer chamar a atenção para os próximos desafios e deve anunciar o aumento de impostos sobre os mais ricos, em parte para financiar sua proposta trilionária de reforma na infraestrutura. Ele sabe que os próximos cem dias serão mais difíceis —e arriscados—, pois precisa avançar com essa agenda, que mistura criação de empregos e economia verde, sem deixar de lado a crise imigratória, a maior de seu governo e seu principal arcabouço de críticas até agora.
O pacote de socorro econômico foi a grande vitória de Biden no Congresso até aqui, e 1 das 11 leis que o presidente assinou desde que tomou posse, em 20 de janeiro. O número é pequeno se comparado a seus antecessores mais recentes —Donald Trump chancelou 28 leis nos cem primeiros dias, e Obama, 14—, mas o dado define a arriscada forma de governar do democrata.
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Em termos de ordens executivas, mecanismo que não precisa do aval do Congresso para entrar em vigor, mas pode ser revertido mais facilmente, o presidente é o recordista desde Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), que governou o país em meio à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial.
Biden assinou 42, muitas das quais para cancelar políticas de Trump, como a saída dos EUA do Acordo Climático de Paris e da Organização Mundial da Saúde, o veto à entrada de pessoas de alguns países de maioria muçulmana em território americano e a liberação de recursos para a construção de um muro na fronteira com o México.
Político tradicional e senador por quase quatro décadas, Biden entende que ordens executivas são efêmeras e, para que suas políticas não sejam revertidas por um eventual próximo presidente, é preciso que o Congresso as torne leis.
O presidente tem pressa porque a frágil maioria de seu partido no Senado —são 50 votos para os democratas e 50 para os republicanos, com desempate nas mãos da vice-presidente, Kamala Harris— pode terminar nas eleições legislativas de 2022.
Projetos que não envolvem orçamento precisam de mais do que apenas maioria simples para serem aprovados, como medidas que estão no pacote de infraestrutura, sobre controle de armas e para frear as restrições de acesso ao voto, temas que Biden tem abordado publicamente.
Enaltecido durante a posse, o discurso pelo bipartidarismo, entretanto, tem ficado para trás. A fórmula de Biden é convencer o Congresso a aprovar suas medidas impulsionado pelo apoio popular —e é por isso que ele tem apresentado as propostas de reforma na infraestrutura e investimento em economia verde atreladas à criação de milhões de empregos e aumento da competitividade no país.
Segundo o site FiveThirtyEight, a média de aprovação do presidente é de 54,4% —mais popular do que Trump durante todo o seu mandato, mas menos do que Obama, que tinha 60% no mesmo período.
Um dos poucos temas que tem unido Biden aos republicanos é a tensa relação com a China e a Rússia.
Até agora, o democrata manteve ou até reforçou as políticas assertivas de Trump contra Pequim e aplicou sanções ao regime de Vladimir Putin por interferência nas eleições americanas e ataques virtuais.
Segundo um integrante do Departamento de Estado, os governos passados tiveram o luxo de escolher as ameaças de segurança nacional contra as quais iriam atacar primeiro, mas Biden não teve essa opção. Nas palavras do diplomata, China, Rússia, Covid-19 e mudanças climáticas se impuseram à Casa Branca.
Na semana passada, Biden liderou a Cúpula de Líderes sobre o Clima, para tentar reposicionar os EUA na liderança da geopolítica mundial, ditada pelo meio ambiente, considerado mais um trunfo do democrata.
A falta de comprometimento claro de países como China e Índia com a redução nas emissões de poluentes na próxima década, porém, podem atrapalhar os planos do americano.
Mas sua maior dor de cabeça hoje é a crise nas fronteiras, com o maior fluxo de imigrantes nos EUA em 20 anos. Durante a campanha, Biden prometeu dar tratamento mais humanitário aos estrangeiros que tentam entrar nos EUA sem documento e facilitar o acesso à cidadania americana a 11 milhões de imigrantes, mas o descontrole nas fronteiras eclipsou medidas já colocadas em prática, como a que pretende reunir as famílias de separadas na divisa no governo Trump.
Biden tem sido duramente atacado, inclusive por aliados, por ter restringido o acesso à imprensa para acompanhar o trabalho das patrulhas na divisa com o México e pelo alto volume de crianças desacompanhadas que ficam em centros de detenção mais do que as 72 horas permitidas por lei.
Ele ainda não conseguiu dar uma resposta efetiva sobre a crise, mas, nesta terça-feira (27), nomeou para o comando da ICE (Agência de Imigração e Alfândega, na sigla em inglês) uma autoridade do Texas conhecida por ser crítica das políticas imigratórias de Trump.
Sob enxurradas de críticas na mesma área, a imigração, Obama carrega a pecha de que podia ter sido mais audacioso durante seu governo, mas, ainda assim, o primeiro presidente negro da história americana deixou duas marcas na história: Obamacare e a reforma financeira para sair da crise de 2008.
O senso de urgência mostra que Biden sabe que o tempo é curto para fazer mudanças estruturais em um país tão polarizado, mas os entraves podem ser grandes, e a possibilidade de concorrer à reeleição —que antes não era cogitada— já apareceu em um pronunciamento do democrata.