Distanciamento entre EUA e Europa vai continuar

Muitos líderes europeus talvez estejam silenciosamente alimentando a esperança de que uma vitória de Joe Biden na eleição presidencial americana de novembro possa ser o prenúncio de uma nova era da doutrina do atlantismo, depois que Donald Trump trouxe a ameaça de guerras comerciais e colocou em dúvida seu comprometimento com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar do ocidente). Mas eles podem ter que se perguntar se o público europeu concorda. 

Na semana passada, pesquisa do Clingendael Institute na Holanda revelou um crescente ceticismo quanto à confiabilidade de uma cooperação transatlântica. Quando perguntados se os EUA representavam uma ameaça à segurança europeia, 29% responderam “sim”, e entre 35% e 36% disseram o mesmo sobre a China e a Rússia. Esmagadores 79% preveem que os EUA reduzirão a proteção que dão à Europa nos próximos cinco anos e exigirão que o continente assuma uma maior responsabilidade sobre sua própria segurança. 

“Os holandeses têm a expectativa de que seus problemas políticos sejam resolvidos principalmente num contexto europeu, em vez de num contexto atlantista, ocidental”, disse Rem Korteweg, pesquisador do Clingendael e coautor do relatório. 

Dos consultados, 72% disseram que a Holanda deve colaborar mais com a França e a Alemanha, incluindo 53% que são a favor de cooperações militares. 

“Isso é surpreendente – o reflexo transatlântico tradicionalmente é superforte”, disse Korteweg. 

Os holandeses não são os únicos. Neste mês, uma pesquisa do Pew Research Center revelou que na França, Alemanha, Reino Unido e Suécia, a proporção do público com pontos de vista favoráveis aos EUA é o mais baixa em 20 anos. A reação dos EUA à pandemia da covid-19 também não ajudou, com os europeus classificando-a como pior do que a de seus países, da União Europeia, da Organização Mundial da Saúde (OMS) ou da China. 

Enquanto os europeus mostram esfriamento na forma como veem os EUA, os americanos também vêm se distanciando da Europa, segundo Alexandra de Hoop Scheffer, diretora do centro de estudos German Marshall Fund, em Paris. 

“Precisamos observar as tendências profundas, não os tuítes presidenciais”, disse Hoop Scheffer. “Olhar como a sociedade americana vem sendo remodelada de muitas formas”, inclusive demograficamente, com mais americanos tendo ascendência latino-americana ou asiática. “O interesse no Velho Continente vai naturalmente, culturalmente, declinar.” 

Politicamente, “a Europa [também] não é mais o foco estratégico de Washington, disse Hoop Scheffer”, acrescentando que a relação transatlântica será cada vez mais vista sob a luz da rivalidade mundial entre EUA e China. 

Isso sugere que a pessoa a ser eleita como novo presidente dos EUA pode ser um fator menos relevante para os interesses europeus do que alguns gostariam de pensar. Depois da guerra do Iraque, as atitudes europeias em relação aos EUA tocaram seu ponto mais baixo. Então, com a eleição de Barack Obama, foram às alturas. Mas o primeiro governo Obama “francamente foi uma verdadeira decepção para a Europa […] suas reações não foram, de forma alguma, transatlânticas”, disse Korteweg. 

O mesmo pode voltar a ocorrer, ressaltou Korteweg. “A mensagem de Biden pode ser tão dura [quanto a de Trump] em termos de gastos de defesa e de arregimentar os europeus para seu lado, por exemplo, na hora de lidar com a China.” 

Hoop Scheffer ressalta que as elites dos países europeus variam no grau de alinhamento que esperam ver entre os interesses da Europa e dos EUA no longo prazo. A França está entre os países mais céticos, disse, relembrando que o país estava “disposto em 2013 a entrar em ação na Síria, [mas] então Obama mudou de ideia”. Os alemães se inclinam a ter uma esperança mais “otimista, talvez ingênua” de que uma vitória de Biden acertaria o rumo da situação, enquanto na Polônia e países vizinhos a presença de soldados dos EUA é vista como “existencial”. 

Hoop Scheffer prevê que o formato Reino Unido-Alemanha-França “provavelmente será o círculo político ao qual Washington recorrerá quando tiver que decidir questões importantes”, em vez da Europa como um todo. 

Ainda assim, ela pensa que “independentemente de quem for o presidente”, o próximo governo americano encontrará pares europeus mais dispostos a mostrar sua “discordância com a Casa Branca” em razão do “treinamento” que tiveram com Trump. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/09/30/distanciamento-entre-eua-e-europa-vai-continuar.ghtml

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