Disputa EUA-China dividirá cadeias de valor estratégicas

A disputa entre China e EUA deve levar a uma divisão das cadeias de valor no mundo. Mas esse processo será lento e mais concentrado em setores como 5G e terras raras, preveem especialistas. Em outras áreas menos estratégicas, essa dissociação será mais difícil e pode ser menos vantajosas às empresas. 

No médio prazo, o viés econômico pesará mais que fatores políticos para multinacionais. Economistas dizem que as companhias ainda têm vantagens na China e na Ásia em geral, não apenas pelos custos menores, mas pelo crescimento do mercado consumidor. 

Depois da investida de quatro anos do ex-presidente Donald Trump contra Pequim na arena tarifária, a disputa entre EUA e China transbordará cada vez mais para áreas como tecnologia, acesso a mercados e laços financeiros, observa Victoria Redwood, da 

consultoria Capital Economics. Ela fala em desglobalização e regionalismo impulsionado pelo surgimento de duas esferas – uma liderada pelos EUA e outra pela China. 

Em fevereiro, Biden pediu revisão das cadeias de produção críticas aos EUA para depender menos da China em áreas como tecnologia. Mas desde as sanções americanas contra empresas chinesas como ZTE e Huawei, em 2018, a China tem se visto forçada a repensar suas cadeias de valor, diz Rory Green, da consultoria TS Lombard. 

“A guerra tecnológica está pressionando Pequim a desamericanizar cadeias de suprimentos tecnológicos. A estratégia visa substituir insumos dos EUA por tecnologia doméstica ou de fornecedores alternativos no sudeste asiático e na Europa”, diz. “Melhorar a inovação doméstica e proteger as cadeias de tecnologia são prioridades no 14o Plano Quinquenal da China.” 

Green prevê uma bifurcação das cadeias entre China e EUA em áreas como telecomunicação, infraestrutura, armazenamento de dados, armamento e na área de cabos de dados submarinos. “Mas para bens menos sensíveis e de menor valor, falta força de vontade política para impulsionar esse desacoplamento e, talvez, gerar preços mais elevados ao consumidor.” 

Dos setores que o governo Biden pediu revisão das cadeias, a China lidera na produção de terras-raras, enquanto os EUA dominam a produção de semicondutores e softwares necessários para fabricação de chips. Green lembra que a disputa na área de semicondutores é o principal exemplo de como a cadeia de valor que envolve EUA e China está se desfazendo. Os EUA puniram empresas chinesas e querem impulsionar a produção local. A China estoca chips e analisa meios próprios de fabricação, enquanto busca fornecedores. 

“Mas muito dessa dissociação das cadeias de suprimento vai depender do grau de importância estratégica que terá cada produto”, afirma Arthur Kroeber, diretor da GaveKal Dragonomics. “Os EUA vem dizendo que tudo é estratégico e, por isso, não é seguro produzir nada na China. Pessoalmente acho isso ridículo, e as empresas também. Essa posição terá de ser revista, e obviamente é impossível todas as cadeias saírem da China.” 

Kroeber afirma que o governo americano terá de definir de forma mais específica o que é, de fato, estratégico para os EUA. “E, então, no que for realmente muito importante, não poderá haver dependência da China, o que deve levar à diversificação das cadeias. A começar por equipamentos de 5G e terras raras, por razões distintas. Em outros setores isso será muito difícil e não há razões para fazê-lo.” 

Um dos maiores obstáculos para as multinacionais mexerem em suas cadeias de produção são as vantagens que encontram na China e na Ásia de modo geral. Por isso, afirma Jorge Arbache, da Universidade de Brasília, dificilmente empresas americanas, europeias e japonesas trarão sua produção de volta, como Trump defendia. 

“Até agora houve muito menos movimento nesse sentido do que se esperava. A grande razão é que a Ásia se tornou o centro da economia global”, diz. “As empresas não têm mais interesse em estar na China e nos vizinhos porque a mão de obra é barata, mas porque a demanda presente e futura está lá.” 

Ele cita montadoras alemãs e japonesas na China e até mesmo o Google, que tem um centro de inteligência artificial em Pequim. “Estar presente na China não é uma opção, é realidade”, afirma. “Por isso as empresas terão uma visão mais pragmática e a agenda de negócios deverá prevalecer. A estratégia política talvez não tenha tanta influência como se espera.” 

Segundo Rob Strayer, vice-presidente do Conselho da Indústria de Tecnologia da Informação dos EUA, o governo Biden reconhece que a China mina os mercados competitivos e impacta cadeias tecnológicas por meio de subsídios maciços a empresas chinesas, condições discriminatórias de acesso ao mercado, transferência de tecnologia. “Se essas questões forem tratadas com êxito e a concorrência leal for restaurada, empresas e consumidores em todo o mundo se beneficiarão”, diz. 

Pesquisa recente do Pew Research Center mostra que 89% americanos consideram a China um competidor ou inimigo. Muitos apoiam abordagem mais firme para relação bilateral EUA-China, incluindo medidas econômicas. 

A pressão dos EUA inclui aliados como Taiwan, Índia, Japão e Austrália. Os três últimos fazem parte do Quad junto com os EUA e se reuniram na semana passada para debater estratégia de vacinação na Ásia sem a China e temas sensíveis como produção de terras raras. A China responde por 60% da produção global desse insumo crítico. 

Mas no caso da China é diferente. “Os EUA têm alianças mais profundas com países como Japão e Austrália. Em outros casos, como com a Índia, trabalham em conjunto pelos interesses compartilhados atualmente”, diz Kroeber. “A China não tem, de fato, aliados e está criando relações nas quais os outros dependam mais dela, como no caso da diplomacia da vacina.” 

Não está claro se um cenário de dissociação das cadeias de valor e divisão entre EUA e China trará benefícios ou perdas em termos globais. Green diz que um “reordenamento provavelmente será caro e o resultado, menos eficiente”. 

Para Kroeber, no entanto, empresas podem sair da China e ir para países do sudeste asiático como estratégia de diversificação, levando mais investimentos para outros países. “Não acho que é tanto uma questão de quem perde ou quem ganha, mas mais uma questão dos benefícios da globalização distribuídos de uma outra forma. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/03/18/disputa-eua-china-dividira-cadeias-de-valor-estrategicas.ghtml

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