Crise no Afeganistão afeta Biden

Se Donald Trump estivesse presidindo a debacle no Afeganistão, o “establishment” da política externa dos EUA estaria condenando a irresponsabilidade e imoralidade da estratégia americana. Como quem está na Casa Branca é Joe Biden, o que se vê, em vez disso, é um silêncio envergonhado. 

Na semana passada, Biden lembrava Edith Piaf, dizendo que não se arrependia de nada por ter deixado o governo afegão na mão. Em julho, ele ainda insistia em dizer que era “altamente improvável a chance de que o Talibã fosse invadir tudo e dominar todo o país”. No Afeganistão, a credibilidade de Biden agora está arruinada. 

A questão estratégica maior é o que o desastre no Afeganistão fará para a credibilidade dos EUA ao redor do mundo. Discutir a situação no país como uma questão de política global mais ampla seria de mau gosto, enquanto a tragédia está em curso no Afeganistão. Em declarações recentes, Biden disse que os EUA não podem “continuar amarrados” a políticas criadas para responder “a um mundo de 20 anos atrás”. “Precisamos enfrentar as ameaças onde elas estão hoje.” A primeira ameaça identificada por Biden foi “a competição estratégica contra a China”. 

Então, qual o impacto da derrota dos EUA no Afeganistão – na realidade, uma derrota para toda a aliança ocidental – na rivalidade entre Washington e Pequim? 

O fracasso dos EUA torna muito mais difícil para Biden levar adiante sua mensagem principal de que os “EUA estão de volta”. Em contraste, encaixa-se perfeitamente com duas grandes mensagens defendidas pelo governo chinês (e pelo russo). Primeira, a força dos EUA está em declínio. Segunda, não se pode confiar nas garantias de segurança dos EUA. 

Se os EUA não vão se comprometer a lutar contra o Talibã, fica em dúvida se os EUA realmente estariam dispostos a ir à guerra contra a China e a Rússia. A rede global de alianças dos EUA, entretanto, é baseada na ideia de que, em última instância, soldados dos EUA realmente seriam enviados para defender seus aliados na Ásia, Europa e em outros lugares. 

Caos no Afeganistão 

A China já é a potência econômica dominante no Leste da Ásia. Ainda assim, as democracias asiáticas veem os EUA como seu principal aliado em questões de segurança. Então, é muito útil para Pequim quando a credibilidade de Washington é abalada. 

Já as consequências diretas para Pequim da retirada dos EUA do Afeganistão, que faz fronteira com a China, não serão tão bem-vindas assim. O governo chinês adotou políticas de detenção e repressão em massa da maioria muçulmana em Xinjiang. A ideia de que os uigures recebam apoio de um governo fundamentalista Talibã despertará temores em Pequim. A possível ameaça de bases terroristas no Afeganistão também. 

Com o tempo, a China pode deparar-se com o dilema clássico da superpotência. É melhor intervir militarmente no turbulento Afeganistão ou deixar o país à própria sorte? Nas palavras de Andrew Small, do Conselho Europeu de Relações Exteriores, os comentários chineses sobre o Afeganistão já estão repletos de referências ao país como o “túmulo de impérios”. 

Em Washington, o paralelo mais presente nas mentes das autoridades é o Vietnã. Em julho, Biden insistiu em dizer que o “Talibã não é o Exército norte-vietnamita”. “Eles não são, nem remotamente, comparáveis em termos de capacidade.” Ele pode vir a se arrepender dessas palavras. O fim da guerra do Vietnã foi, de fato, uma debacle. Muitos questionaram o poder dos EUA em sua esteira. Mas, 14 anos depois da queda de Saigon, a Guerra Fria tinha acabado, e o Ocidente havia vencido. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/08/16/crise-no-afeganistao-afeta-credibilidade-de-biden.ghtml

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