Crise inédita na China alimenta tempestade geopolítica perfeita

O desafio imposto pela insatisfação popular com o manejo da pandemia da Covid pela ditadura chinesa alimenta uma tempestade geopolítica perfeita que envolve os principais atores do mundo contemporâneo.

Os Estados Unidos, principal potência global, enfrentam uma guerra fratricida política que cinde o país desde 2016, além de múltiplos desafios à sua posição predominante desde o fim da Guerra Fria, em 1991.

A Rússia de Vladimir Putin, derrotada como União Soviética naquele conflito de décadas, jogou todas as fichas na Guerra da Ucrânia para restaurar de vez seu prestígio imperial e assegurar pressupostos de segurança. Até aqui, fracassa nas duas frentes, em um conflito incerto e perigoso.

Muito devido à agressão russa, a União Europeia luta para manter sua complexa coesão interna ante a pressão de um inverno de privações, inflação no preço da energia e de alimentos, além de fissuras no grau de comprometimento com Kiev na guerra.

Até aqui, as nuvens carregadas se colocavam no horizonte chinês de forma bastante definida, mas a chuva ainda não havia chegado. Agora, desaba copiosamente na forma de protestos que, se não desafiam a estabilidade do regime de Xi, obrigam o líder a se expor de forma inaudita.

Na maioria dos modelos de análise geopolítica no mercado, esses quatro protagonistas do chamado norte global dão as cartas na dinâmica mundial. Há, evidentemente, outros países vitais, como Índia e Japão, mas para fins de análise e previsão políticas o quarteto é imbatível.

Ele compõe cerca de 60% do Produto Interno Bruto do mundo, e o grosso de sua força militar: dos sete maiores orçamentos globais de defesa, seis são do grupo (a Índia ficou em quarto lugar em 2021), e isso diz respeito aos gastos anteriores à guerra.

Historicamente, sempre houve blocos de poder e rivalidades, em geral com uma potência sobressaindo quando outras entravam em crise. Um caso clássico é a ascensão americana para ocupar o espaço que o Império Britânico teve até a Primeira Guerra (1914-18), quando Berlim desafiou Londres e Paris.

Mesmo na Guerra Fria, o jogo imposto pelos soviéticos ao mundo capitalista era uma disputa entre vencedores, no caso do segundo conflito mundial (1939-45), quando a Alemanha foi obliterada, e seus impulsos militaristas, tolhidos. Em 1991, o fim da bipolaridade global abriu caminho para o que o então presidente George H. W. Bush chamou em discurso de nova ordem mundial.

Era bombástico, mas parecia consistente até naquilo que ele não previa: o espantalho comunista derreteu e os EUA emergiam vitoriosos, mas a Guerra do Golfo pariu o jihadismo do século 21, a China iniciou sua ascensão econômica, enquanto o Japão afundava, e a UE via seu tratado fundador ser estabelecido.

Três décadas depois, todo o arranjo está em crise, com a diferença de que não há uma potência ou bloco em posição muito superior à dos rivais para clamar a vitória para si. Ao contrário, os anos de globalização e interdependência econômica complicaram toda a equação.

Washington, por exemplo, pode vitaminar o grupo Quad, que forma com Índia, Japão e Austrália, e antagonizar-se a Pequim em todos os aspectos possíveis da Guerra Fria 2.0, inclusive econômicos, mas ainda tem um grau de ligação simbiótica com a economia chinesa que dificulta rompimento abrupto.

Ele foi aplicado à Rússia de Putin devido à guerra, mas o problema maior era dos europeus e de sua dependência energética do vizinho do leste. Mesmo assim, os impactos do regime draconiano de sanções, com inflação recorde, por exemplo, se veem também em solo americano.

Da mesma forma, Xi Jinping enfrenta seu maior desafio doméstico num momento de fragilidade que tem a ver com o arcabouço econômico do mundo contemporâneo. A disrupção das cadeias logísticas centradas na China com a pandemia acabou perpetuada por sua política de Covid zero, objeto dos atuais protestos.

Isso, aliado a incertezas sobre a solvência do mercado imobiliário chinês e a problemas de regulação bancária que levaram a outros atos populares neste ano, coloca o recém-conduzido para um terceiro mandato líder em uma posição na qual tudo o que não precisa é de um choque externo mais duro.

Não por acaso, apesar de manter a fidelidade a Putin, Xi abriu um canal com Joe Biden após o encontro de ambos no G20 de Bali, e uma reaproximação, tática que seja, parece possível. Significativamente, os mercados celebram os efeitos iniciais da repressão chinesa aos atos e torcem pelo fim da confusão.

Claro, nada disso sobrevive a uma nova praça da Paz Celestial ou à anexação forçada de Taiwan, mas a cautela com que os EUA têm tratado os protestos chineses até aqui mostra que ninguém está interessado em balançar ainda mais o barco. A tempestade, hoje, é para todos, e se haverá uma nova ordem mundial desenhada a partir dela, seu contorno é uma incógnita.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/11/crise-inedita-na-china-alimenta-tempestade-geopolitica-perfeita.shtml

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