Corte alemã quer retirar poderes do BC Europeu

O 75o aniversário da derrota da Alemanha nazista ocorreu no dia 8 de maio. O 70o aniversário da Declaração Schuman, que inaugurou a integração europeia no pós- guerra, ocorreu no dia 9 de maio. Apenas alguns dias antes dos dois aniversários, o tribunal constitucional alemão disparou um míssil jurídico no coração da União Europeia (UE). Seu julgamento é extraordinário. É um atentado aos rudimentos da economia, à integridade do Banco Central Europeu (BCE), à sua independência e ao ordenamento jurídico da UE. 

O tribunal tomou uma decisão contra o programa de aquisições no setor público (PSPP, nas iniciais em inglês) do BCE. Não argumentou que o BCE tinha se envolvido, indevidamente, em financiamento monetário, e sim que a instituição não tinha efetuado uma análise de “proporcionalidade”, ao avaliar o impacto de suas políticas, sobre uma longa série de preocupações conservadoras: “dívida pública, poupanças pessoais, programas de pensão e aposentadoria, preços dos imóveis e a manutenção da solvência de empresas economicamente inviáveis”. 

Políticas monetárias são, necessariamente, políticas econômicas. Mas as políticas do BCE, inclusive a compra de ativos, são justificadas pelo fato de que a instituição não estava – e não está – cumprindo seu “objetivo primordial” determinado pelo tratado, que é “estabilidade dos preços” definida como uma inflação “inferior, mas próxima de, 2% no médio prazo”. O tratado da UE diz que outras considerações são secundárias. 

O tribunal também decretou que os órgãos constitucionais e as divisões administrativas alemãs”, inclusive o Bundesbank, poderão não participar de atos “ultra vires” (os que transcendem a competência legal de uma instituição). Assim, o 

Mas o tratado da UE estabelece que “nem o BCE nem um banco central nacional… deverá pedir ou aceitar instruções… de qualquer governo de um país-membro ou de 

Bundesbank pode não continuar a participar dos programas de compras de ativos do BCE enquanto o BCE não tiver realizado uma avaliação de proporcionalidade satisfatória para o tribunal. A instrução do tribunal coloca o Bundesbank em um conflito entre legislações. 

O tribunal também está atacando o direito do BCE de tomar suas decisões de política monetária de forma independente. A Alemanha lutou arduamente para instaurar a independência do banco central na união monetária. Agora, seu tribunal constitucional decretou que, se o BCE não satisfizer os juízes no sentido de ter considerado plenamente uma lista altamente política de efeitos colaterais de políticas monetárias, as compras de ativos serão impermissíveis. 

Os tribunais de outros países-membros poderão encarar como compatível decretar que seus bancos centrais nacionais não poderão participar de políticas públicas que não sejam do seu agrado. Em pouco tempo, o BCE terá sido loteado exaustivamente, transformando-se numa nulidade. 

Acima de tudo, o tribunal alemão decretou que pode ignorar uma regra anterior do Tribunal Europeu de Justiça (ECJ, nas iniciais em inglês) em favor do BCE. Este é um ato de secessão judicial. Ou a UE é um sistema jurídico integrado ou não é nada. Ela repousa na aceitação, por todos os países-membros, de sua autoridade em suas áreas de competência. Em comunicado após a decisão do tribunal constitucional, o BCE respondeu, com razão, que “tão somente o Tribunal de Justiça… tem competência para decidir que um ato de uma instituição da UE contraria a legislação da UE. Divergências entre tribunais dos países-membros quanto à validade de tais atos correriam o risco de pôr em xeque a unidade do ordenamento jurídico da UE e de depreciar a segurança jurídica”. 

Imagine se os tribunais de cada país-membro pudessem decidir que as determinações do ECJ são “arbitrárias de um ponto de vista objetivo”. 

Quais são as implicações? 

Se o tribunal alemão ficar, em última instância satisfeito de que o BCE  avaliou devidamente o impacto econômico de suas aquisições, o PSPP poderá continuar. 

Mas o tribunal reduziu a flexibilidade futura do BCE ao limitar suas participações na dívida mobiliária de qualquer país-membro a 33% do total em circulação e ao insistir que as compras de ativos sejam distribuídas de acordo com as participações dos países-membros do BCE. 

Na ausência de outros programas de apoio da zona do euro, a probabilidade de calotes deu um salto. De fato, os “spreads” dos bônus do governo italiano aumentaram um pouco, devidamente, desde o anúncio do tribunal. Poderá acabar sobrevindo uma crise, com efeitos devastadores: talvez até uma dissolução da zona do euro. 

Outros poderão seguir a Alemanha na rejeição à competência do ECJ e da UE. A Hungria e a Polônia são candidatos óbvios a isso. Os historiadores do futuro poderão assinalar esse fato como um ponto de inflexão decisivo da história da Europa, rumo à desintegração. 

O que pode ser feito? O BCE não pode ser passível de prestar contas a um tribunal nacional. Mas o Bundesbank pode oferecer ao tribunal a análise de proporcionalidade. Talvez isso seja o suficiente, embora também se constitua num mau precedente. Ou, alternativamente, a decisão poderá ser ignorada. Se um tribunal alemão pode ignorar o ECJ, talvez o Bundesbank possa ignorar esse tribunal. 

Por outro lado, o BCE poderia simplesmente abandonar os esforços de socorrer a zona do euro e aceitar o resultado que vier, seja qual for. 

A UE poderá mover um processo de violação contra a Alemanha. Mas seu alvo direto seria o governo alemão, que é pego entre os órgãos da UE, por um lado, e o tribunal, por outro. Ele não poderá mudar a decisão. 

De forma mais radical, a UE poderia tomar providências para criar o grau necessário de solidariedade fiscal. Mas os obstáculos a isso são grandes. Um novo tratado parece fora de questão no atual ambiente de intensa desconfiança mútua. Finalmente a Alemanha pode, arrojadamente, se separar da zona do euro. Mas, antes que tome uma decisão desse gênero, espera-se que se exigirá do país que também faça uma análise completa sobre a possibilidade ou não de isso ser “proporcional”. 

Um ponto está claro: o tribunal constitucional decretou que a Alemanha, também, pode reassumir o controle. Com isso, criou uma crise possivelmente insolúvel. (Tradução de Rachel Warszawski) 

Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT. 

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/corte-alema-quer-retirar-poderes-do-bce.ghtml

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