China e Rússia não devem cometer o erro de subestimarem os EUA

Os EUA governados por Joe Biden estão em decadência irreversível e perderam sua vontade de poder. Essa, em essência, é a atual opinião do governo chinês. Os diplomatas da China deixaram de disfarçar seu desprezo pelo “quadro de fraqueza”) americano. A julgar por sua demonstração ostensiva de força na fronteira com a Ucrânia, o russo Vladimir Putin compartilha desse ponto de vista. Tanto Pequim quanto Moscou encaram a exaustão dos EUA como uma oportunidade de resolver assuntos inconclusos – no Mar do Sul da China e no território da ex-URSS. Eles podem estar, perigosamente, cometendo um erro de avaliação sobre a capacidade dos EUA de mudar de ânimo. 

A opinião pública dos EUA se voltou contra o militarismo externo quando a Guerra do Iraque começou a dar errado, no governo de George W. Bush. Ela mantém essa posição desde então. Quinze anos depois, é fácil supor que o “não intervencionismo” americano tenha se tornado a opinião arraigada de sua população. Mas a história dos EUA – e seu bom senso – sugere que a temperatura poderá mudar rapidamente de baixa para alta se defrontada com fatos novos. Pense no que aconteceu após o 11 de Setembro. Agora imagine hordas de ucranianos fugindo diante da invasão de tanques russos a suas cidades, no inverno europeu. 

Erros de avaliação das intenções dos EUA custaram caro no passado. Em 1950, a Coreia do Norte interpretou erradamente a atitude do secretário de Estado, Dean Acheson, de omitir a Coreia do Sul de um mapa do “perímetro defensivo” dos EUA na Ásia. Seguiram-se três anos de lutas sangrentas pela Península da Coreia. April Glaspie, a embaixadora americana no Iraque em 1990, disse a Saddam Hussein que os EUA não tinham opinião sobre “conflitos entre árabes”, diante da concentração de divisões militares na fronteira do Iraque com o Kuwait. Três meses após a ocupação do Kuwait, os EUA reuniram uma força de várias centenas de milhares de soldados na Arábia Saudita. Em 1999, o líder da Sérvia, Slobodan Milosevic, apostou que a unidade da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental liderada pelos EUA) se desmantelaria após alguns dias de ataques aéreos ao seu país. Setenta e oito dias depois ele reconheceu a independência de Kosovo. Até mesmo o atentado de 11 de setembro resultou de erro de avaliação. Documentos recuperados no último reduto de Osama bin Laden mostraram que ele achava que os atentados terroristas de 2001 fariam os EUA se retirar do mundo islâmico. Sabemos o que aconteceu. 

A moral da história não é a de que os EUA necessariamente reagem com sabedoria. Muitas guerras movidas pelos EUA, principalmente em reação ao 11 de Setembro, foram um tiro no pé. A questão é que Moscou e Pequim podem facilmente confundir o macabro silêncio americano de hoje com conformismo permanente. A opinião pública pode ser volúvel e tendente a guinadas emocionais. Biden, certamente, não busca uma luta – ele está fazendo todo o possível para encontrar uma solução diplomática para Putin em relação à Ucrânia. Mas ele é um político perfeito e acabado. Se os eleitores adotarem linha-dura, Biden pode mudar radicalmente de postura. 

Putin, em especial, poderá ser perdoado por pensar que os EUA se tornaram um tigre de papel. Enquanto a Rússia acantonava suas divisões na fronteira com a Ucrânia, a Casa Branca de Biden preparava uma “cúpula das democracias” de dois dias. As interações on-line não vão alterar qualquer fato concreto – menos ainda em casa, onde Biden não tem votos suficientes para sancionar proteções à democracia americana. É pouco provável que exercícios desse tipo tendam a fazer os autocratas mundiais pensarem duas vezes. 

Menos de seis meses atrás, Biden retirou as forças americanas do Afeganistão com tanta rapidez que bilhões de dólares em equipamentos foram deixados no país. Pareceu uma maneira excêntrica de mostrar que os EUA tinham voltado como potência ao cenário mundial. Barack Obama impôs sanções à Rússia após Putin anexar a Crimeia em 2014. Putin absorveu os custos e manteve a Crimeia. 

Por que a Rússia deveria esperar uma reação diferente agora? A resposta, é claro, é uma incógnita. Mas vale a pena ter em mente alguns fatos. Apesar de seus erros crassos no exterior e da sua toxicidade interna, os EUA têm um poderio militar maior que o de Rússia e China juntas. Travaram mais guerras do que qualquer outro país. Algumas delas ainda em curso, ainda que em refluxo. Comparados a outras democracias, os EUA têm uma cultura marcial. Os americanos respeitam suas Forças Armadas mais do que qualquer outra instituição. 

Também não falta temeridade aos EUA. Como destacou o escritor Robert Kagan, os EUA são “um país perigoso”. O fato de estarem em relativa decadência apenas aguça essa característica. Potências hegemônicas raramente se conformam em sair de cena sem reagir. Boa parte da discussão atual sobre política externa nos EUA se concentra nos riscos de se cometerem erros de cálculo com a China ou a Rússia devido a erros de cálculo sobre seus limites intransponíveis. O mundo seria um lugar mais calmo se a China e a Rússia estivessem, igualmente, preocupadas com os limites intransponíveis dos EUA. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/12/13/china-e-russia-nao-devem-cometer-o-erro-de-calculo-de-subestimarem-os-eua.ghtml

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