O presidente americano Joe Biden anunciou o plano para reformar a Suprema Corte atualmente composta por maioria conservadora que deu importantes vitórias a Donald Trump. De saída da Casa Branca, ele propõe revogar a imunidade presidencial, limitar os mandatos vitalícios e aprovar um código de ética para os juízes. Sem força política para tanto, a proposta pode ser vista como um apelo para reforçar a bancada democrata no Congresso em ano de eleição.
A vice-presidente e provável candidata do partido à Casa Branca, Kamala Harris, apoiou a reforma, argumentando que o tribunal passa por uma crise de confiança, com a imparcialidade colocada em dúvida por escândalos e decisões que anularam precedentes de longa data. Nas suas palavras, as medidas são necessárias para “fortalecer a democracia e garantir que ninguém esteja acima da lei”.
Ninguém Está Acima da Lei é, aliás, como foi batizada a emenda que pretende reverter imunidade concedida a presidentes e ex-presidentes americanos a pedido de Trump. A decisão praticamente impede que o republicano volte ao banco dos réus antes das eleições e enfrentou forte resistência da minoria liberal, expondo a cisão ideológica entre os juízes — seis conservadores a três liberais.
“Cada vez mais decisões importantes estão sendo tomadas em linhas ideológicas estritas, seis e a três. E isso contribui para que as pessoas vejam as decisões apenas como ideológicas”, afirma David Super, professor na faculdade de direito da Universidade Georgetown, em Washington (Georgetown Law).
“É previsível que juízes conservadores adotem métodos conservadores e que os liberais podem não concordar, mas isso deve permanecer estritamente no texto da Constituição. Quando a Corte se desvia da Constituição de maneiras que beneficiam o Partido Republicano, isso deixa de parecer conservadorismo simplesmente e começa a parecer manobra partidária”, explica, lembrando que a Constituição prevê imunidade apenas para membros Congresso, não para presidentes.
Nesse caso, a Suprema Corte concluiu que os ex-presidentes são imunes de processos por ações oficiais do governo. O parecer faz a ressalva que a conduta pessoal é passível de punição, mas sem riscar a linha entre o público e o privado.
O pedido de imunidade absoluta foi apresentado pela defesa de Donald Trump no processo em que é acusado de tentar reverter a derrota para Joe Biden na última eleição. Como resultado, a ação voltou para instâncias inferiores, que precisam estabelecer quais atos apontados pela acusação são pessoais e podem ser julgados.
Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, Aziz Huq, especialista em direito constitucional, a Corte cai em contradição ao deixar a questão em aberto. Isso porque o principal argumento a favor da imunidade é que os presidentes precisam de garantias para poder governar e tomar as decisões difíceis.
“O tribunal criou um grande escopo de imunidade a fim de criar certezas, mas a maneira que escreve a decisão cria muitas incertezas. Por que o tribunal faria isso? Uma coisa que se pode apontar é que a incerteza sobre até onde vai a imunidade ajuda Donald Trump porque significa que uma série de questões têm que ser litigadas antes que o julgamento possa começar”, afirma, destacando que esse é um ponto de preocupação.
Ao escrever o seu voto no caso da imunidade (Trump vs US), o conservador Clarence Thomas ainda deu a dica que a juíza da Flórida Aileen Cannon, indicada e elogiada por Donald Trump, seguiria ao derrubar o caso dos documentos secretos encontrados na mansão de Mar-a-Lago.
Thomas argumentou que o procurador-geral Merrick Garland violou a Constituição ao nomear o promotor especial Jack Smith — responsável pelas duas ações federais contra o ex-presidente — e que o nome deveria ter passado pelo Congresso.
A tese era levantada pela defesa, mas tinha pouco respaldo porque a Justiça americana derrubou casos parecidos envolvendo promotores especiais. Até que foi endossada por um juiz da Suprema Corte. Duas semanas depois, Cannon encerrou o caso dos documentos secretos, alegando que a nomeação do promotor especial era ilegal.
Nas instâncias inferiores, Donald Trump tem sido beneficiado com uma série de decisões que contribuíram para a estratégia de adiar os julgamentos. O ex-presidente foi considerado culpado nas 34 acusações do caso Stormy Daniels, mas a sentença foi adiada enquanto a defesa tenta anular a condenação com base na imunidade e o republicano não deve voltar ao banco dos réus antes das eleições.
Até a presença dele nas cédulas foi alvo de uma batalha na Justiça. O Colorado entendeu que o ataque ao Capitólio seria equivalente a uma insurreição e, por isso, Donald Trump estaria inelegível, com base numa esquecida emenda do período pós-guerra civil americana. Sem entrar no mérito do 6 de janeiro, a Suprema Corte decidiu que Estados não podem desqualificar candidatos em eleições nacionais.
Reforma da Suprema Corte
A Suprema Corte também se viu no centro da batalha política nos Estados Unidos ao reverter Roe versus Wade, o entendimento que por cinco décadas garantiu o acesso ao aborto legal em todo país. Donald Trump costuma se gabar de ter indicado três juízes conservadores, formando a maioria para derrubar a jurisprudência. O aborto, no entanto, mobilizou eleitores democratas nas eleições de meio de mandato, frustrando a “onda vermelha” que os republicanos esperavam. Agora, Biden parece, mais uma vez, apelar para as eleições no Congresso ao prometer reformar a Suprema Corte.
“A reforma certamente não pode passar este ano porque nunca seria levada à votação na Câmara (controlada pelos republicanos) e seria obstruída no Senado. O que Biden está dizendo é que se os democratas vencerem a presidência e tiverem o controle de ambas as casas do Congresso na eleição, poderiam avançar nessa questão”, afirma David Super.
O tribunal édesaprovado por 56% dos americanos eaprovada por apenas 36%, segundo o agregador de pesquisas FiveThirtyEight. Para se ter uma ideia do quanto a percepção sobre o tribunal mudou nos últimos anos, a aprovação era de 46% e a reprovação de 37% em 2021.
“Tenho grande respeito por nossas instituições e pela separação de poderes”, argumentou Joe Biden em artigo para o The Washington Post. “O que está acontecendo agora não é normal e mina a confiança do público nas decisões do tribunal, incluindo aquelas que impactam as liberdades pessoais”.
Além da emenda para reverter a imunidade, a proposta prevê a imposição de limites para os mandatos dos juízes, que são vitalícios. No artigo, Biden defendeu que esse prazo deveria ser de 18 anos. Ele sustentou que isso reduziria as chances de qualquer presidência alterar radicalmente a composição da corte para as gerações futuras — como fez Donald Trump, que teve direito a três indicações.
O democrata pediu ainda ao Congresso que aprove um código de ética vinculativo para Suprema Corte. “O atual código de ética voluntário da corte é fraco e autoimposto. Os juízes devem ser obrigados a revelar presentes, abster-se de atividade política pública e se recusar a participar de casos em que eles ou seus e”, escreveu no Post.
Biden não o cita nominalmente, mas o conservador Clarence Thomas aceitou mais de 100 presentes avaliados em US$ 2,4 milhões nos últimos 20 anos, segundo levantamento da organização sem fins lucrativos Fix the Court. Os valores superam — e muito — os recebidos pelos demais juízes da Suprema Corte.
Thomas também foi pressionado por democratas a se declarar impedido no caso da imunidade porque a sua esposa, a ativista conservadora Virginia “Ginni” Thomas, se envolveu em esforços para reverter o resultado da última eleição. Sem dar nomes, o democrata destacou que presentes e conflitos de interesses ligados ao 6 de janeiro “levantam questões legítimas sobre a imparcialidade do tribunal”.
Embora a aprovação seja improvável, analistas acreditam que o Congresso teria o poder de aprovar um código de ética para a Suprema Corte. O que resta dúvida é se teria poder para impor limites nos mandatos dos juízes e, principalmente, se isso resolveria a politização no tribunal.
“Não acho que seja realmente uma resposta ao problema subjacente, que é o processo de nomeação de juízes sob a Constituição dos EUA passa por corpos políticos, e assim é um processo que é inevitavelmente dominado pela política em vez de procurar pessoas que não estarão alinhadas com um movimento político”, afirma Aziz Huk.
De todo modo, a proposta sinaliza uma virada na política americana. Tradicionalmente, os republicanos estavam mais preocupados com a composição da Suprema Corte e o controle sobre a Justiça. Em 2016, o líder da maioria no Senado Mitch McConnell se recusou a chamar as audiências para confirmar Merrick Garland, nome de Barack Obama para uma vaga aberta na Corte, deixando a nomeação caducar até a posse de Donald Trump que ficou com a indicação.
Com a maioria conservadora na Corte consolidada por três indicações de Trump, o democrata Joe Biden foi pressionado a aumentar o número de juízes com o objetivo de balancear o tribunal. A medida é controvertida, tendo sido adotada por regimes autoritários, como Hugo Chávez, que assumiu o controle da Suprema Corte da Venezuela ao aumentar o número de cadeiras de 20 para 32, nomeando aliados para as vagas abertas.
“É difícil ver como isso seria estável porque uma vez que um lado expande o tribunal, o outro lado poderia expandir em resposta. A própria Suprema Corte poderia derrubar esse tipo de medida. Há muitas incertezas sobre esse caminho”, afirma Aziz Huq.
David Super pondera que atualmente o tribunal com proporção conservadora de dois para um não reflete a divisão dos americanos, mas concorda que, se os democratas mudam as regras, os republicanos poderiam fazer o mesmo no futuro.
Apesar da pressão, Joe Biden se limitou a propor mandatos de 18 anos, sem mencionar a expansão da Suprema Corte na reforma. Os primeiros juízes afetados pela regra seriam conservadores. Clarence Thomas está na corte há 33 anos, John Roberts há 19 e Samuel Alito há 18.
“Os democratas estão tentando interferir na eleição presidencial e destruir nosso sistema judiciário, atacando seu oponente político, EU, e nossa honrada Suprema Corte. Temos que lutar por nossos tribunais justos e independentes e proteger nosso país”, criticou Trump na Truth Social este mês, quando a proposta foi antecipada pela imprensa americana.
A reforma também foi alvo de críticas do presidente da Câmara, o republicano Mike Johnson. “É revelador que os democratas queiram mudar o sistema que tem guiado nossa nação desde sua fundação simplesmente porque discordam de algumas das decisões recentes da corte”, destacou. “Essa jogada perigosa do governo Biden-Harris está morta ao chegar na Câmara.”