Warren Buffett diz que gostaria de possuir ainda mais ações da Apple. O Goldman Sachs está lançando um novo cartão de crédito em associação com a titã da tecnologia. E nas próximas semanas, dependendo do que aconteça nos mercados, é possível que a Apple se torne a primeira empresa do mundo com uma capitalização de mercado de US$ 1 trilhão. Mas, quer isso aconteça ou não, a Apple já é exemplar. Estude essa companhia e poderá entender as cinco tendências atuais mais significativas no mercado.
A primeira é engenharia financeira. Como a maioria das maiores e mais lucrativas empresas multinacionais, a Apple tem montanhas de dinheiro – US$ 285 bilhões – bem como muita dívida (cerca de US$ 122 bilhões). Isso porque, como quase todas as outras empresas grandes e ricas, ela estacionou a maior parte de seu dinheiro disponível em carteiras de títulos no exterior nos últimos 10 anos. Ao mesmo tempo, emitiu dívida a taxas baratas para realizar montantes recordes de recompras de ações e pagamentos de dividendos desde a crise financeira. A Apple é responsável por cerca de um quarto dos US$ 407 bilhões em recompras anunciadas desde que a lei tributária de Donald Trump foi aprovada, em dezembro, como mostrou artigo de Rana Forooharno Financial Times, publicado pelo Valor de 15/05.
Mas as recompras levaram dinheiro principalmente para os 10% da população que possuem 84% de todas as ações. O fato de as recompras de ações terem se tornado o maior uso individual de caixa empresarial durante mais de uma década agora aqueceu os mercados. Mas também aumentou o fosso de riqueza, que muitos economistas acreditam ser não apenas o maior fator para um crescimento mais lento do que a tendência histórica, mas que também está fomentando o populismo político que ameaça o próprio sistema de mercado.
Esse fenômeno foi intensificado por uma segunda tendência simbolizada pela Apple: o surgimento de intangíveis – como propriedade intelectual e marcas (dos quais a empresa dispõe às carradas) – em relação a bens tangíveis como parte da economia global. Como Jonathan Haskel e Stian Westlake mostram em seu excelente livro, “Capitalism Without Capital”, essa mudança tornou-se perceptível por volta de 2000, mas decolou efetivamente após a chegada do iPhone em 2007.
A economia digital tem a tendência de criar superastros, já que coisas como software e serviços de internet são extremamente susceptíveis a efeitos de escala e beneficiam-se de efeitos de rede. Mas, de acordo com Haskel e Westlake, isso também parece reduzir o investimento na economia como um todo. Isso deve-se não apenas ao fato de os bancos relutarem em emprestar para empresas cujos ativos intangíveis podem simplesmente desaparecer se forem à falência, mas também por causa do efeito “o vencedor leva tudo” de que um punhado de empresas, como a Apple (ou Amazon ou Google), se beneficiam. Essa é provavelmente uma das principais razões para a escassez de startups, declínio da criação de empregos, queda da demanda e outras tendências perturbadoras em nossa economia bifurcada.
A concentração de poder do tipo que empresas como a Apple ou a Amazon desfrutam é uma das principais razões para a tendência número três no mercado: níveis recordes de fusões e aquisições. Muitas das fusões que vimos nos últimos meses – T-Mobile/Sprint, AT&T / Time Warner, da compra da Aetna pela CVS compra da Flipkart pelo Walmart – mostram grandes empresas tentando competir com empresas digitais ainda maiores, que perturbaram seus modelos de negócios tradicionais.
Em parte alguma isso é mais verdadeiro do que em áreas como telecomunicações e mídia, onde muitas empresas assumiram montantes significativos de dívida para se encorpar e competir nesse novo ambiente de streaming de vídeo e mídia digital. Parte dessa dívida de alto rendimento parece agora frágil, o que ressalta o quarto ponto chave a ser considerado no mercado atual: o de que a próxima grande crise provavelmente não virá dos bancos, mas do setor empresarial.
O rápido crescimento dos níveis de endividamento é historicamente o melhor indicador antecipado de uma crise. E neste ano o mercado de títulos de empresas tem estado bastante aquecido, tendo as empresas emitido um recorde de US$ 1,7 trilhão no ano passado e mais de meio trilhão neste ano. Até mesmo empresas medíocres beneficiaram-se do dinheiro fácil. Mas com a mudança no ambiente dos juros, talvez mais rapidamente do que se imagina, muitas poderão ficar vulneráveis.
O Banco de Compensações Internacionais alertou que o longo período de juros baixos produziu um número maior do que o habitual de empresas “zumbis”, sem lucros suficientes para quitar suas dívidas caso o ambiente de juros mude rapidamente. Quando isso acontece, prejuízos e efeitos em cascata podem ser mais graves do que o normal, tanto devido à deterioração das proteções legais oferecidas aos credores como à presença de agressivos fundos que investem em dívida no sufoco, lucrando em cima das empresas em dificuldades.
É claro que, se e quando a próxima crise nos atacar, o poder deflacionário da tecnologia, exemplificado por empresas como a Apple, poderá dificultar seu gerenciamento. Essa é a tendência número cinco. Uma deflação relacionada à tecnologia é uma grande parte do que manteve os juros tão baixos por tanto tempo – ela não apenas conteve os preços como também os salários.
O fato de as taxas estarem tão baixas implica que os bancos centrais terão muito menos espaço para navegar qualquer crise futura. A Apple e outros fornecedores de intangíveis beneficiaram-se mais do que outras empresas desse ambiente de juros baixos, dívida barata e altos preços das ações nos últimos 10 anos. Mas seu poder também semeou o que poderá ser a próxima grande virada nos mercados.
http://www.valor.com.br/opiniao/5524519/apple-semeia-proxima-tempestade#