A queda de Cabul nas mãos do Talibã – 20 anos após a sua expulsão – coloca fim à influência americana no Afeganistão, talvez por décadas. Nesse sentido, é comparável à derrubada do xá do Irã em 1979, à queda de Saigon em 1975 ou à Revolução Cubana de 1959.
Com os EUA fora do caminho, o Talibã se empenhará em estabelecer relações com uma série de países, incluindo China, Paquistão e os países do Golfo Pérsico. Os novos governantes do Afeganistão parecem ansiosos por reconhecimento internacional e pelo comércio externo e a ajuda dele decorrentes. Esse desejo poderá convencer o Talibã a moderar seus impulsos mais fanáticos.
O tratamento dado às mulheres afegãs e aos inimigos derrotados pelo Talibã será atentamente observado fora do país. Alguns dos porta-vozes do grupo islâmico sugeriram que, ao contrário de seu primeiro período no poder, o Talibã permitirá que mulheres trabalhem e recebam instrução formal. Mas muitas mulheres afegãs, atualmente envolvidas na política e na sociedade civil, mostram-se profundamente céticas.
Governos estrangeiros não são o único público internacional passível de interessar ao Talibã. O fato de um movimento islâmico violento ter conseguido derrotar os EUA será um impulso aos jihadistas do mundo inteiro – que poderão ir ao Afeganistão do Talibã em busca de orientação e inspiração.
John Allen, ex-comandante das forças americanas e aliadas no Afeganistão, agora prevê que a al-Qaeda “operará abertamente a partir da cordilheira do Indocuche [fronteira entre Afeganistão e Paquistão] com a saída das forças americanas”. O governo Biden disse que vai contra-atacar caso isso ocorra. Mas Allen destacou que operações de contraterrorismo são “um esforço muito difícil sem colaboradores confiáveis em terra”.
O Afeganistão também faz fronteira com China, Irã, Paquistão e está próximo da Índia. Todos esses países estarão preocupados com o possível contágio da violência inspirada no Talibã.
A Índia já antecipa mais problemas em Jammu e na Caxemira, sua única província de maioria muçulmana. A China tem motivos para temer que os uigures, população muçulmana que sofre repressão de Pequim em Xinjiang, possam encontrar uma base no Afeganistão. O Irã ficará encantado em ver os EUA derrotados, mas temerá pelo destino dos hazaras, um grupo minoritário xiita que foi cruelmente perseguido pelo Talibã. Todos os vizinhos do Afeganistão e a União Europeia (UE) se prepararão para um afluxo de refugiados.
Dentre os países vizinho, o que se encontra na situação mais indefinida e perigosa é o Paquistão. Por décadas, o governo de Islamabad – e especialmente os serviços de inteligência paquistaneses, o ISI – permitiu refúgio seguro para o Talibã. Essa política era meio negada e meio justificada pelo fato de o Paquistão precisar de “profundidade estratégica” – o que significava evitar que o Afeganistão caísse sob a influência da Índia. O poder exercido pelos islâmicos de linha dura dentro do próprio Paquistão também contribuiu para criar um ambiente permissivo para o Talibã. O apoio tácito de Islamabad ao islamismo violento no Afeganistão chegou até a sobreviver às barbaridades cometidas em solo paquistanês – como o massacre em uma escola em Peshawar, em 2014, na qual o Talibã paquistanês matou cerca de 150 pessoas, entre as quais 132 crianças.
O governo do Paquistão continua a afirmar ter usado “alavancagem máxima” para tentar obrigar o Talibã a negociar. Mas não tem merecido crédito em amplos círculos. Uma alta autoridade afegã reclamou para mim recentemente: “Nunca tive uma reunião ruim com os paquistaneses. [A questão é que] eles nunca cumprem suas promessas.”
Mas a tomada de poder, pelo Talibã, do vizinho Afeganistão também é perigosa para o Paquistão. Os jihadistas do país se sentirão encorajados pela vitória. A fronteira de 2.560 quilômetros entre os dois países é tradicionalmente permeável. O Talibã paquistanês já parece ter recuperado sua força – e no mês passado reivindicou responsabilidade por 26 atentados terroristas no Paquistão, entre os quais um ataque a bomba suicida que matou nove trabalhadores chineses, entre outros. Autoridades paquistanesas seculares também podem se tornar alvos.
Todos os países fronteiriços ao Afeganistão esperarão fervorosamente que o Talibã tenha tirado algumas lições de seu último período no poder, de 1996 a 2001, e que não permita que seu país volte a se tornar uma base para jihadistas internacionais.
Se o Talibã não tentar exportar o fundamentalismo islâmico violento, seu exercício do poder em Cabul será um fato novo bem-vindo para a China. A doutrina de política externa governo chinês tem como base o princípio da “não interferência” – o que significa, essencialmente, que Pequim não adotará nenhuma posição sobre o sistema político ou as práticas de direitos humanos no Afeganistão desde que o Talibã respeite os “interesses principais” da China.
A China já sinalizou sua disposição de colaborar com o Talibã por meio de uma rumorosa reunião recente entre Wang Yi, o ministro das Relações Exteriores chinês, e o mulá Abdul Ghani Baradar, do Talibã. A importância desse encontro não se resume ao fato de ter ocorrido; inclui o fato de Pequim ter julgado conveniente dar- lhe publicidade.
Se a China conseguir iniciar relações de cooperação com um governo encabeçado pelo Talibã no Afeganistão, isso trará vantagens econômicas a Pequim – como a possibilidade de ter acesso a um corredor de passagem, pelo Afeganistão, para o porto de Gwadar, de construção chinesa, no Paquistão.
Em termos estratégicos, a China, além disso, saudará a oportunidade de aumentar as pressões sobre a Índia, ao reforçar o temor indiano de ser submetido a um cerco. Acima de tudo, Pequim vai celebrar as novas evidências de que o mundo pós- americano acaba de começar.
Gideon Rachman. Financial Times