A geopolítica é a maior ameaça à globalização

Financial Times; De que maneira a globalização poderia acabar? Há quem consiga imaginar um “desacoplamento” relativamente pacífico entre economias que até recentemente estavam estreitamente integradas. Mas é provável que a fratura dos laços econômicos seja tanto consequência quanto causa de um aprofundamento da discórdia global. Se for esse o caso, é provável que a globalização termine de maneira mais destrutiva.

A humanidade infelizmente já fez coisa parecida. Da revolução industrial do início do século XIX para cá, tivemos dois períodos de aprofundamento da integração econômica transnacional e um período em que ela entrou em reversão. O primeiro período de globalização precedeu 1914. O segundo começou no final da década de 1940, mas se acelerou e ampliou a partir do final da década de 1970, com uma integração cada vez maior entre as economias. Entre eles, ocorreu um longo período de recuo da globalização, delimitado pelas duas guerras mundiais e aprofundado pela Grande Depressão e pelo protecionismo que a acompanhou e ao mesmo tempo agravou. Por fim, desde a crise financeira de 2007-2009, a globalização não parece ter nem avançado e nem recuado.

Esse histórico em nada indica que um período de recuo da globalização possa ser um momento feliz. Pelo contrário. Os anos entre 1914 e 1945 foram marcados pelo colapso da ordem política e econômica, tanto no interior dos países quanto no plano internacional. A revolução bolchevique de 1917, ela mesma surgida em consequência da Primeira Guerra Mundial, infligiu o comunismo ao mundo. De acordo com algumas estimativas, o comunismo matou cerca de 100 milhões de pessoas, um total de vítimas maior até que o das duas guerras mundiais.

Aquele período de caos e calamidade teve alguns resultados benéficos: tornou os impérios europeus insustentáveis; resultou nos Estados de bem-estar social modernos; e tornou os seres humanos um pouco mais conscientes de seu destino comum. No entanto, no cômputo geral, foi uma época catastrófica.

Uma questão controversa é de que forma e até que ponto a paz está ligada à globalização. Como John Plender argumentou recentemente, o comércio não necessariamente garante a paz. O início da Primeira Guerra Mundial em uma época de comércio relativamente próspero certamente demonstra esse fato. O nexo causal aponta mais na direção oposta, da paz ao comércio. Em uma era de cooperação entre grandes potências, o comércio tende a crescer. Em uma época de suspeita mútua, especialmente se houver conflito aberto, o comércio entra em colapso, como vemos agora entre a Rússia e o Ocidente.

As pessoas às vezes definem o pensador liberal inglês Norman Angell como um sujeito ingênuo, por acreditar na visão de que o comércio traria paz. No entanto, em “The Great Illusion”, escrito pouco antes da Primeira Guerra Mundial, ele argumentou que os países não ganhariam coisa alguma de valor com a guerra. A experiência subsequente confirmou esse ponto de vista: todos os principais participantes da guerra saíram perdendo. Da mesma forma, os russos comuns não se beneficiarão da conquista da Ucrânia, ou os chineses comuns da conquista de Taiwan. Mas essa verdade não impede conflitos. Sob a liderança de psicopatas e a influência do nacionalismo e de outras ideologias perigosas, somos capazes de loucuras grotescas e crimes horrendos.

Uma resposta possível é que desta vez não há como acontecer qualquer coisa parecida com o “grande recuo da globalização” que tivemos no século 20. Na pior das hipóteses, o resultado talvez venha a ser um pouco como a Guerra Fria. No entanto, essa é uma posição injustificadamente otimista. É bem provável que as consequências de uma ruptura nas relações entre as grandes potências sejam ainda piores em nossa era do que foram no passado.

Uma razão óbvia para isso é que nossa capacidade de aniquilação mútua cresceu muito. Um estudo recente e perturbador da Universidade Rutgers argumenta que uma guerra nuclear em larga escala entre os Estados Unidos e a Rússia, especialmente dada a probabilidade de um “inverno nuclear”, poderia matar mais de 5 bilhões de pessoas. É algo que podemos considerar inimaginável? Infelizmente, não.

Outra razão pela qual o resultado poderia ser ainda pior desta vez é que dependemos de um alto nível de cooperação esclarecida para sustentar um planeta habitável. Isso é particularmente verdadeiro quanto à China e aos Estados Unidos, que juntos respondem por mais de 40% das emissões mundiais de dióxido de carbono. O clima é um exemplo por excelência de desafio de ação coletiva. Uma quebra nas relações de cooperação provavelmente porá fim a qualquer chance de evitar um processo descontrolado de mudança climática.

É preciso, assim, voltar à esperança de que as divisões mundiais cada vez mais profundas que vemos hoje possam ser contidas, como o foram, de modo geral, na era da Guerra Fria. Uma ressalva quanto a essa esperança é que houve alguns momentos de alto risco durante a Guerra Fria. Além disso, a economia soviética não foi integrada à economia mundial, enquanto a China e o Ocidente estão integrados e ao mesmo tempo concorrem, um contra o outro e contra o resto do planeta. Não existe uma forma indolor de desacoplar esses laços econômicos. É uma loucura imaginar que exista. E qualquer esforço nesse sentido certamente criará conflito.

De fato, os controles recentemente anunciados pelos Estados Unidos sobre as exportações à China de semicondutores e tecnologias associadas parecem ser um passo decisivo. Certamente, é uma ação muito mais ameaçadora para Pequim do que qualquer coisa que Donald Trump tenha feito. O objetivo é claramente retardar o desenvolvimento econômico da China. É um ato de guerra econômica. Haverá quem concorde com a medida. Mas ela terá enormes consequências geopolíticas.

É muito improvável que a globalização seja desmontada por meio de um desacoplamento cuidadosamente calibrado e inteligente. Não é assim que nós, humanos, trabalhamos. As pessoas podem fingir que o desmonte da globalização tem algo a ver com a redução da desigualdade. Mas isso também é um disparate: as economias mais abertas são, frequentemente, aquelas em que a igualdade é maior.

São os conflitos de poder que mais ameaçam a globalização. Ao procurar aumentar sua segurança, as grandes potências geram mais insegurança em seus rivais, criando uma espiral viciosa de desconfiança mútua. Já estamos vivendo essa espiral. Essa realidade moldará o destino da economia mundial. Não estamos caminhando para um localismo benigno, e sim para uma rivalidade em que a vitória completa de um vai requerer a derrota completa de outro. Nosso mundo pode não sobreviver a um surto virulento dessa doença.

Martin Wolf Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/martinwolf/2022/11/a-geopolitica-e-a-maior-ameaca-a-globalizacao.shtml

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