A reunião termina e ninguém troca cartões de visita. Não por falta de interesse, ao contrário. Na China, quando duas pessoas querem dar continuidade aos negócios, é muito comum que saquem do bolso seu smartphone, que pode ser um aparelho de uma marca local como Xaomi ou Huawei, e abram o aplicativo WeChat, espécie de WhatsApp turbinado, com muitas outras funcionalidades, como comércio eletrônico e pagamento móvel. Um dos dois escaneia o QR code na tela do outro e pronto, estão conectados, sem a necessidade de digitar uma única letra.
O país asiático há muito deixou de entrar apenas com o trabalho braçal e
barato da montagem de geringonças eletrônicas inventadas pelos americanos
e cada vez mais tem desenvolvido tecnologia de ponta dentro de casa. É onde está, por exemplo, o maior mercado de pagamentos móveis do mundo, com mais de 500 milhões de usuários em 2017, dezenas de vezes o tamanho do mercado americano. E não se trata de uma prerrogativa apenas das conhecidas gigantes como Tencent, a dona do WeChat, a varejista on-line Alibaba ou a Didi, de transporte compartilhado, que briga com o Uber em muitos mercados como o Brasil. Na China, hoje em dia, respira-se inovação. O país fervilha e virou um grande hub de startups, que trava uma disputa pela supremacia digital com o Vale do Silício.
“A China tem 160 unicórnios [empresas de tecnologia que valem mais de US$ 1 bilhão], e no Brasil as pessoas não ouviram falar nem de dez delas. A Ant Financial, por exemplo, financeira do grupo Alibaba, é o maior unicórnio do mundo, avaliado em US$ 156 bilhões”, diz Ricardo Geromel, sócio da StartSe, empresa brasileira que se define como uma plataforma digital para conectar o universo de startups no país e que tem organizado missões de brasileiros interessados em conhecer o ambiente de inovação da China. Na próxima semana, será a vez de executivos e clientes de um grande banco privado brasileiro.
Se os grandes grupos Baidu, Alibaba e Tencent, conhecidos pela sigla BAT, têm despejado bilhões de dólares para desenvolver novas tecnologias, muitas vezes apoiando empresas nascentes, por outro lado, como quase tudo na China, há uma grande mão nada invisível do Estado por trás de todo o processo. O governo definiu que quer que o país se torne líder em inteligência artificial até 2030 e traçou metas ambiciosas também para energias renováveis, robótica e carros elétricos.
A cidade portuária de Hangzhou, capital da província de Zhejiang e sede do grupo Alibaba, é um bom exemplo de como essa mão estatal atua na prática. Onde antes existiam depósitos de grãos desativados brotou um enorme celeiro de startups, com área de três quilômetros quadrados e batizado com o inspirador nome de Dream Town (Cidade do Sonho). Dinheiro e incentivos estatais não faltam. Anran Feng, uma funcionária do comitê que administra a Dream Town, explica que hoje existem ali 1.645 startups e 14,9 mil jovens trabalhando nelas. No total, diz, 4.037 empresas já passaram pela cidade dos sonhos desde que ela foi criada, em março de 2015. Dessas, além das que ainda estão por lá, outras 1.200 já andam com as próprias pernas e se mudaram. As demais, ou seja, mais de mil, não sobreviveram. “As empresas podem ocupar o espaço físico e usar nossa nuvem de dados de graça por três anos”, diz ela.
Para conseguir um lugar, os empreendedores, da China ou do exterior, passam por um concurso. “Antes eram selecionados quatro projetos por mês, mas agora, que nosso espaço já está quase todo preenchido, o ritmo deve diminuir”, diz Feng. O governo local tem um fundo anjo de 500 milhões de yuans, ou US$ 70 milhões, para investir nas empresas. Fora isso, outros 1.386 fundos privados disponibilizaram 294 bilhões de yuans, ou US$ 40 bilhões, para as startups da Dream Town.
A Lingville, de inteligência artificial, é uma das empresas que se beneficiam dessa estrutura. Fundada neste ano, fechou uma parceria com a IBM para ser a única empresa na China a usar o sistema Watson para reconhecimento de idiomas. “Em breve a Air France começará a usar nosso sistema em seus voos”, diz Candy Zhang, gerente de desenvolvimento de negócios da Lingville.
A Nihub é uma empresa que oferece suporte de serviços para empreendedores que querem ingressar na China e escolheu Hangzhou para se instalar. “Na Europa, tudo é fácil, mas nada é possível. Na China, tudo é difícil, mas nada é impossível”, diz o suíço Lucas Rondez, fundador da Nihub e um ex-funcionário do UBS. “A China oferece muito suporte para inovação e as pessoas aqui se adaptam muito facilmente a novas tecnologias”, avalia, citando o exemplo do pagamento móvel. “E em Hangzhou, particularmente, você encontra dinheiro disponível, apoio do governo, bons talentos e um ecossistema de inovação. Gosto de ser parte desse sonho chinês.”
O brasileiro Erick Moura também virou parte do sonho chinês. Ele é CEO da Cartesi, uma empresa envolvida em um tema bastante árido, o blockchain. Ela está desenvolvendo uma tecnologia que pretende dar escala para operações que usam o blockchain. Basicamente, a ideia é extrair as informações do blockchain, traduzir para o ambiente de programação Linux, mais fácil e acessível, e depois devolvê-las para serem executadas no blockchain novamente. “O ambiente do blockchain é lento e caro, o que torna a escalabilidade um problema. A ideia é conseguir fazer a computação externamente”, explica. Seus sócios, Augusto Teixeira e Diego Nehab, matemáticos do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), do Rio de Janeiro, é que desenvolveram a tecnologia. A empresa foi fundada em Cingapura e está sendo acelerada na China pela Chinaccelerator, o braço chinês da SOSV, uma combinação de aceleradora e investidora de capital de risco com sede nos EUA.
“Tem sido muito proveitoso porque somos incentivados a estabelecer uma metodologia para testar hipóteses e obter resultados de forma rápida. E, através de uma rede rica de mentores e contatos na indústria, podemos entender como direcionar nosso desenvolvimento para ajudar em problemas reais enfrentados pelo mercado”, diz Moura.
A Chinaccelerator ocupa um pedaço de um grande coworking em Xangai. O escritório é bagunçado para padrões brasileiros, mas segue a lógica chinesa, talvez com algum excesso. Logo na entrada há um sofá velho em que uma pessoa dormia e outra trabalhava no dia em que a reportagem visitou o lugar. Quando se caminha pelo escritório, é preciso tomar cuidado para não tropeçar em fardos de latas de refrigerante e cerveja deixados pelo chão e é possível ver estações de trabalho entulhadas de cabos, papéis, canecas e muito mais.
William Bao Bean é um americano filho de mãe chinesa e o sócio-diretor da
Chinaccelerator, uma das principais aceleradoras em atuação no país. Bao
Bean, que já foi um analista do setor de tecnologia em Wall Street e também
em Taiwan, conhece bem o ambiente de inovação chinês e suas diferenças em relação ao que se faz no Vale do Silício. “Nos últimos anos, houve um movimento na China rumo à tecnologia sofisticada, como inteligência artificial. Mas enquanto na Europa e nos Estados Unidos tudo que se desenvolve está trancado nas universidades, na China é imediatamente aplicado em produtos que tocam a vida das pessoas.”
Bao Bean recorre, então, a um exemplo pessoal. Ele costuma usar o aplicativo de transporte compartilhado Didi para se deslocar. “Eles têm uma tecnologia que o Uber não tem. Depois de uma semana, o sistema entendeu que eu não moro no portão da frente do condomínio, entendeu que eu moro dentro dele e em qual unidade exatamente. Agora, no mapa, o sistema automaticamente corrige para onde eu de fato moro e informa o motorista para entrar no condomínio. O sistema aprende pela experiência. Nos EUA isso soaria assustador, mas aqui na China isso se chama bom serviço.”
Muito se exalta o impulso tecnológico chinês, mas pouco se fala sobre seu lado não tão brilhante. Existe uma expressão de que na China de hoje em dia trabalha-se no esquema 9/9 por 6, ou seja das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana. Não é raro ver pessoas dormindo sobre suas mesas nos escritórios. “O extremo dinamismo e empreendedorismo tecnológico ocorre às custas de um esforço humano levado além do razoável”, diz um empreendedor.
Além disso, a mão do Estado que empurra a inovação adiante também pode se tornar pesada.
“Há muita liberdade para as pessoas inovarem, com poucas regras que as amarram. Mas, por outro lado, não há recurso algum se o governo decidir que o que você está fazendo é prejudicial aos interesses dele ou das pessoas. Se eles disserem que você tem que parar agora, então seu negócio está morto”, diz Bao Bean.
“Os próprios gigantes tecnológicos existentes hoje na China são produto do isolamento de mercado, de restrições de acesso à internet e de alinhamento dessas empresas ao governo”, diz o mesmo empreendedor.
Seja como for, nada parece ser capaz de deter a China em seu plano de estar à frente da nova onda tecnológica. E os grupos que se desenvolveram no mercado local agora querem ir além das muralhas chinesas. É o caso, por exemplo, da agência de viagens on-line Ctrip, a segunda maior do mundo, atrás apenas da Booking. A empresa lançou operações para os mercados americano e europeu e adotou a marca trip.com, de maior apelo comercial fora da China. “E, se você nasce grande na China, é como largar com um continente inteiro conquistado numa partida de War”, diz Geromel, da StartSe. “Você pode até não vir para a China, mas não pode ignorar o que está acontecendo aqui em inovação”, diz Lucas Rondez, da Nihub.
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