OCUPAÇÃO ANA C.

Beatriz Grobman

Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos da minha palma
Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?

Vilma Arêas, uma senhora pequenina com voz de professora-mãezona, chora ao ler o poema enlutado de Cacaso sobre a morte de Ana Cristina César. A mesa de encerramento da Flip 2016 acontece como um poema: a fala mansa que escorre pelos olhos silenciosos. O bom da palavra escrita é que a gente sabe que ela está ali. Podemos pegar e ver seu desenho e, especialmente, podemos mastigá-la com vozes diferentes e até engolir as favoritas. O bom da palavra escrita é que a gente sabe que a Ana Cristina está ali.

A crítica literária (a Vilma) logo nos lembra disso, que Ana Cristina está aqui, nas fotos, na Flip, nos poemas. E não teria como não estar: escritora de uma literatura íntima, Ana C. se entalhou na poesia de maneira tão definitiva que a palavra se tornou rastro de seu corpo.

Ana Cristina César era uma poetisa marginal do início dos anos 70. Ela não era grande defensora de bandeiras, mas tenho uma amiga que diz lindamente que ser é uma bandeira. E Ana Cristina César era, seus poemas eram. Em plenos anos 70, no auge de um regime militar no Brasil, sua poesia trazia a dúvida, a confissão e o escondido, como se fosse uma mulher dilacerada no papel. Como que respondendo ao primeiro poema, parece, Ana C. já havia escrito:

I. Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.
II. Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.

Seus seios estão ali, nutrindo tudo o que ela escreve até que esteja ela impressa no texto. Ana C. tinha a preocupação de ocupar sua poesia com uma intimidade rasgada, se colocando aos pés do leitor, como ela sugere no nome de sua publicação de maior sucesso. Seu texto é corpo naquilo que há de mais humano num corpo: ele ri, chora, dói e sangra.

Ser esse texto foi, nos anos 70, e é, hoje, uma grande bandeira. Fui à Flip com três amigas queridas e foi muito especial estar em um espaço em que o texto feminino estava em evidência. Questões de gênero que estão tão fervorosas na minha geração já estavam sendo desnudadas por mulheres como Ana C., como Clarice Lispector, há muito tempo. Foram mulheres que já exerciam sua feminilidade – não necessariamente a da maquiagem impecável, da cozinha e da maternidade romântica – de maneira plena. Tão plena que era escrita, que era arte. E, quando vira arte, vira universal, vira da ordem do ser humano.

E me encanta imaginar: que feminilidade é essa? Não vislumbro pesquisa que responda, mas gosto da ousadia para além de palavras polidas de Ana C. para descrevê-la: “Acho que existe sim um tipo de sensibilidade feminina, que é uma sensibilidade meio caótica, é uma sensibilidade mais sutil, é mais desorganizada. Ela é uma sensibilidade talvez meio histérica. A mulher é histérica por definição. Mulher histérica é uma figura do século 19, não? Inclusive histero quer dizer ‘útero’, em grego. Quer dizer, mulher é aquela que histeriza o tempo todo, aquela que joga no corpo, aquela que fala com o corpo”.

É essa histeria que tateamos no seu texto. Há uma urgência em ler o mundo com maior contemplação e um grito desesperado para que o mundo seja mais sentido, melhor percebido e escrito. O feminino na poética de Ana C. transcende a temática e vira linguagem, vira ocupação. E tudo parece novo quando visto por uma nova perspectiva, que gera novos fluxos de ideias e pensamentos. Voltando um pouco à imagem dos seios que nutrem, essa Ana Cristina desvairada e histérica talvez seja um pouco a vaca profana dona das divinas tetas que deixou seu leite derramado para que as próximas gerações a redescobrissem e dialogassem com ela, marginais.

Na Flip 2016, ainda, a relação dos marginais foi especialmente interessante. Fica evidente o diálogo que se estabelece entre o feminino à margem nos anos 70 e o feminino à margem em 2016. No SESC de Paraty, a temática feminina era cantada por duas mulheres transexuais, duas travestis que cantavam a lua, a prostituição, a morte e a resistência entre versos de Caetano e em uma voz andrógina. O show “Mulher” da banda As Bahias e a Cozinha Mineira nos trouxe um novo corpo feminino que ocupa a margem e começa a transbordar. Aqui, o feminino mais uma vez transcende temática e corpo – ou o que se entende de maneira limitada sobre o corpo.

Fora da programação da Flip, à margem do rio que corta Paraty, um grupo de mulheres da comunidade de Trindade pedia assinaturas e a contribuição de quem se solidarizasse com a sua perda: um menino caiçara foi morto pela PM em conflito territorial causado pela especulação imobiliária. Ali, as mães da comunidade resistem para ocupar um mínimo pedaço de terra no meio da festa literária, que acontece apesar da morte de seu menino. Elas levam artesanato, comida e música local para trazer atenção a sua terra que, apesar da proximidade geográfica de Paraty, parece pertencer a um mundo paralelo ao clima festivo.

De forma irônica, o acontecimento marginal era presente na Flip. Pelo que estava nas ruas de pedra de Paraty, sim, mas também pelo que não estava. Tendo em mente tudo aquilo que permanece à margem, creio que Ana C. tenha sido uma precursora dos nossos tempos e peço que sua poesia (nos) ocupe. Que a margem ocupe.

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