Luísa Nasraui – Aluna do 6º semestre de Design
Em Agosto de 2015 dei início à minha Pesquisa de Iniciação Científica “Construção e humanização do espaço urbano – o papel do Parque Augusta”, desenvolvida no programa PIC/ESPM sob orientação do Prof. Dr. Carlos Frederico Lúcio. A escolha do tema se deu não só à sua atualidade e relevância para a definição do futuro da cidade em que vivemos como também porque se trata de um assunto mundialmente discutido no que tange à gestão urbana dos espaços. Estudar essa questão foi não somente desvendar as dificuldades existentes na viabilização do parque, como entender o modelo de cidade vigente até então e o porquê de ele ter sido construído dessa maneira ao longo dos anos. Além disso, tem aberto caminhos para discussões de extrema importância para o futuro não só da cidade como de seus cidadãos. E foi sob essa temática em que surgiu o convite para participar do grupo “Eu e o Outro na Cidade”, a fim de compartilhar os resultados e conclusões obtidas nesse processo a respeito das relações eu-outro e eu-cidade.
A função social da propriedade e o uso do solo são de extrema importância na construção dos espaços urbanos. O modelo de cidade vigente em São Paulo, contudo, prioriza iniciativas privadas e públicas que privilegiam a cidade como espaço de espetáculo e consumo. Valores importantes como cidadania, convivência e alteridade ficam à margem da sociedade e seus cidadãos, privados daquilo que lhes é de direito: a cidade. Nesse contexto, surgem inúmeros movimentos coletivos reivindicando o uso de espaços públicos e promovendo intervenções de ocupação, como vemos no caso da luta pela viabilização do Parque Augusta. Este se tornou um símbolo de resistência contra a especulação imobiliária e da luta pela ocupação consciente e sustentável dos espaços urbanos, defendendo áreas verdes de preservação e condenando a utilização do solo orientada para a atribuição de lucro a quem tem a propriedade da terra.
O Parque Augusta é uma área de aproximadamente 24 mil m², localizada na cidade de São Paulo, na Rua Augusta, entre a Rua Caio Prado e a Rua Marquês de Paranaguá, no bairro da Consolação. Ainda que seja propriedade privada, o terreno, na década de 1970, com a demolição do colégio Des Oiseaux ̶ sediado no local desde 1907 ̶ foi declarado de utilidade pública e, além disso, abriga vegetação de Mata Atlântica nativa, tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) em 2004 (BRASIL, 2004) e que, portanto, não pode ser removida.
Essa condição ̶ que perdura há mais de 40 anos ̶ trouxe à tona um conflito ainda inconcluso. De um lado, moradores e frequentadores da região reivindicam a viabilização do parque. De outro, as atuais proprietárias do terreno ̶ construtoras Cyrela e Setin, que o adquiriram em setembro de 2013 ̶ querem construir torres comerciais e residenciais. Trata-se de um embate que envolve não só a discussão da viabilização do parque, como também a reflexão da função da propriedade, pois todo e qualquer imóvel ̶ ainda que seja de esfera privada ̶ possui uma função social no que diz respeito ao conjunto da sociedade (ROLNIK, 2013), prevista pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
É fato que essa discussão, com o decorrer dos anos, ganhou maior visibilidade e destaque na mídia e alguns motivos justificam isso. A valorização da região da Augusta, resultante da revitalização das áreas centrais empreendida pela parceria público-privada e da transformação do uso do solo, despertou interesse de investidores imobiliários e de novos moradores e frequentadores da localidade. Dessa maneira, o único “vazio urbano” logo foi visto como oportunidade construtiva, dividindo opiniões e retomando o antigo dilema entre aqueles que são a favor de um parque em 100% do terreno e aqueles que acreditam que um empreendimento comercial seria o mais apropriado para a região e sua consequente valorização. Outro fato que contribuiu para fomentar a discussão foi a recente aprovação do novo Plano Diretor, em 2014, que prevê a implementação de diversos parques urbanos, dentre eles o Parque Augusta, e ainda o configura como Zona Especial de Proteção Ambiental (ZEPAM) o que restringe o potencial construtivo do terreno e dá força para os movimentos coletivos que defendem a criação de um espaço público desatrelado do mercado imobiliário.
O surgimento desses coletivos também conferiu destaque à questão do Parque. Movidos por uma desconfiança em relação às políticas públicas, principalmente urbanas, e com o intuito de garantir respostas a seus anseios ̶ não tão compreendidos pelo poder público ̶ , se estruturaram em movimentos democráticos, horizontais, de modo que todos tenham o mesmo direito à opinião, apartidários e geridos por meio de assembleias populares e redes sociais, o que permite a adesão de uma boa parcela da população e incentiva a colaboração daqueles que se identificam com a causa, por meio de pequenas intervenções que estimulam a fruição dos espaços públicos, por exemplo. Essa prática ̶ bottom-up ou “de baixo para cima” ̶ se provou eficaz em captar os desejos e anseios da população e em contribuir para as políticas urbanas, auxiliando na promoção de uma cidade mais inclusiva e na criação de uma relação mais humanizada com a cidade.
A reapropriação da cidade perpassa ainda pela transformação dos espaços urbanos em lugares convidativos e voltados para a fruição pública e aponta para a importância de se construir uma identidade para os lugares, com o intuito de fortalecer os vínculos entre cidade e pessoas e de resgatar percepções de pertencimento, segurança, convivência e vida. É nesse momento que o design se torna uma ferramenta indispensável, uma vez que possibilitaria a criação de experiências únicas para os cidadãos e conferiria destaque e valor aos pontos principais dos espaços.
O embate travado entre as construtoras proprietárias do terreno e os defensores do parque em 100% da área extrapola a região em si, uma vez que contribui para a discussão do resgate dos espaços públicos em toda a cidade. O destaque conferido ao dilema do Parque Augusta sinaliza a importância de se repensar o planejamento urbano como um todo, retomando a escala humana e priorizando o “espaço urbano como local de encontro dos moradores da cidade” (GEHL, 2013, p. 3).
O dilema do Parque Augusta, portanto, não se trata de uma questão isolada, pelo contrário, levanta o questionamento de qual modelo de cidade queremos construir. Carrega um significado especial, pois representa o conflito entre gestões de planejamento urbano: de um lado, o exemplo de cidade que temos seguido até então, com a construção do empreendimento comercial, em que a utilização do solo é orientada para a atribuição de lucro a quem tem a propriedade de terra. De outro, a reivindicação pelo uso incisivo e saudável dos espaços públicos, com a defesa pelo parque na totalidade do terreno, preservando áreas verdes e objetivando a reapropriação da cidade pelas pessoas. É simbólico porque sugere um novo caminho de gerir a cidade e sua relação com seus cidadãos. Porque coloca o contato humano acima do capital, o pedestre acima do carro, o convívio acima do isolamento. E isso traria realmente uma inversão dos valores já tão enraizados na população. O Parque Augusta desperta, portanto, o interesse em conhecer e vivenciar momentos de interação e sociabilização no espaço urbano e sua visibilidade auxilia na produção de outras políticas públicas condizentes com essa ideologia, afinal uma “cidade não é a soma dos seus lugares, mas a relação entre eles, de modo que a visibilidade de um implica na produção dos demais” (FERRARA, 2002, p.129).
De acordo com o arquiteto e urbanista Gehl (2013), uma política de planejamento urbano adequada para a escala do pedestre deve ser pautada em quatro objetivos: (a) uma cidade viva, traduzida pela vida no espaço público; (b) uma cidade segura, alcançada à medida que mais pessoas se movimentam e permanecem nos espaços urbanos; (c) uma cidade sustentável, em que grande parte de seu sistema de transporte se dê por meio da “mobilidade verde” (a pé, de bicicleta ou transporte público); e (d) uma cidade saudável, uma vez que as pessoas adotariam como prática cotidiana os atos de caminhar e pedalar, combatendo o sedentarismo hoje acentuado pelo uso do automóvel.
Todas essas práticas em conjunto, aos poucos, constroem um novo espaço urbano mais humanizado, em que os principais atores são a cidade e as pessoas. Em São Paulo, com o Plano Diretor Estratégico de 2014, aprovado pelo prefeito Fernando Haddad, é possível notar um maior investimento em projetos alinhados com essa ideologia proposta por Gehl, o que tem transformado os espaços urbanos em lugares de encontro. Projetos recentemente adotados como os programas Centro Aberto e Rua Aberta bem como a instituição de ciclovias permanentes acabam por convergir para um mesmo objetivo: oferecer um melhor espaço urbano, renovando suas formas de uso e convidando as pessoas a permanecerem na cidade.
Medidas como essas, portanto, trazem resultados expressivos e importantes para que se atinja um exemplo de cidade mais amigável, viva, segura, saudável e sustentável. Corrigem os fatores resultantes de uma gestão que privilegia o grande capital e acentua a especulação imobiliária, tornando novamente a rua como opção de lazer e convidando as pessoas a voltarem a ocupar os espaços públicos e se divertirem coletivamente. Colocam as pessoas novamente em contato, diminuindo a sensação de estranhamento que temos sobre o “outro”, sobre o “não-eu”. Resgatam a relação eu-cidade uma vez que deixamos de nos isolar em condomínios fechados e automóveis e passamos a (re)descobrir sensorialmente o espaço ao redor. É, pois, um passo importante para a alteração do modelo de cidade vigente e para a ressignificação do sentido de público.
Ao grupo “Eu e o Outro na Cidade”, ao meu orientador Fred e aos professores Guilheme Umeda e Ágata Tinoco, queria dizer que me sinto grata e extremamente feliz por fazer parte (ainda que timidamente) dessa iniciativa incrível que vem sendo construída na Escola e que julgo de profunda importância para a formação pessoal e engajamento dos jovens de hoje. Muito obrigada!