VR na aplicação de vacinas em crianças: um exemplo de ganho imediato anti-educativo

Pedro de Santi

Qualquer um que tenha filhos passou muitas vezes pela experiência difícil de leva-los para tomar as vacinas de rotina. Quando os filhos ainda são portáteis e não entendem o que está acontecendo, o sofrimento prévio está só com os pais: eles fazem o que acreditam ser o indicado para a segurança da saúde dos filhos, mas se ressentem por infligir dor a eles.
Quando as crianças passam a entender o que vai acontecer, soma-se ao sofrimento dos pais aquele das crianças, incapazes de fazer a relação entre a dor pontual do presente e o ganho em prevenção. “Não vir a ter uma doença” é algo muito abstrato no futuro; a picada é já. Aliás, o mais comum é que haja uma enorme e desgastante ansiedade que nem se materializa na dor de fato.
Mas a situação é sempre sofrida e parece que estamos levando nossos filhos ao abatedouro.

Uma ação divulgada no começo de maio da conta de um experimento para usar a Realidade Virtual para evitar o sofrimento daquela cena (http://exame.abril.com.br/marketing/filme-criancas-vacina-realidade-virtual/). Um vídeo mostra crianças na reação comum ao momento da vacina e, então, outras que colocam os óculos de VR e são inseridos numa narrativa bonitinha, na qual protagonizam como heróis a salvação de um reino. São integrados à ação a assepsia com o algodão e álcool e, por fim, a própria picada. Então a criança tira os óculos e…”já passou!”.
Alívio geral dos pais, que se esquivaram do sofrimento.

Neste espaço, por diversas vezes tenho tomado uma posição contrária à demonização do uso da tecnologia. Procuro sustentar que vejamos ao menos a ambivalência envolvida em nossa relação com a ela. Há uma crítica necessária aos usos alienantes e aditivos do excesso de exposição à vida virtual, vindas de discursos fortes como de meus colegas psicanalistas ou do pensamento de esquerda. Muitas vezes, no entanto, parece-me que o discurso crítico alinha-se, sem se dar conta e paradoxalmente, a um pensamento extremamente conservador, que se recusa a pensar e incorporar transformações da experiência que já estão dadas. Neste sentido, não se vê possibilidade de subjetivação e emancipação no mundo atual e se postula que se resista a ele. Quem então se ocupará de organizar e pensar este novo ambiente? As mudanças nas formas de experiência representem mesmo um “fim do sujeito”?

Assim, ainda que eu procure evidenciar, em contraponto, as possibilidades subjetivas em nosso ambiente tecnológico, a ação que relatei no início do texto relativa ao uso da VR para evitar o sofrimento me parece um exemplo acabado dos maus usos da tecnologia. Ela é especificamente alienante e não educativa. O alívio imediato dos pais priva todos os atores da cena de um confronto com a realidade. Simplesmente, mente-se para a criança, afinal.

Num mundo de conforto e consumo expandido, ao menos nas classes medias do mundo, as crianças são cada vez menos expostas a dificuldades e privações. Sabemos que, psicologicamente, é através das frustrações e perdas que passamos a processar recursos próprios, como a tolerância à passagem do tempo, a necessidade substituir objetos de amor perdidos, o enfrentamento de dificuldades e renúncias para se obter um ganho real adiante.

Mas, como pais, gostaríamos de poupar nossos filhos disto tudo. Dói ver um filho sofrer. Tudo isto faz parte de nosso anseio por poupar nossos filhos de sofrimentos pelos quais passamos. Não é difícil perceber o quanto este nosso cuidado é, afinal, imediatista e até egoísta. Aliviamos o presente e não os preparamos para o futuro.
Ocorreu-me que talvez o embate da hora de levar um filho para tomar vacinas seja um dos poucos momentos que restou para o aprendizado de que ser pai e mãe inclui dizer não e frustrar muito os filhos; e para as crianças aprenderem que coisas (muitas e muitas) são ruins e absolutamente necessárias.

Muitas vezes há uma disputa sobre quem vai acompanhar a criança e “fazer o trabalho sujo” de submete-la a uma situação de dor. Pode haver um jogo de empurra que define quem morre com o mico na mão de exercer esta função de corte e inserção numa ordem social, distinta dos afetos familiares.
Quando o pai encontra recursos para se esquivar daquele enfrentamento, sente-se aliviado, mas priva o filho do básico do aprendizado sobre a vida a ser vivida.
Por fim, a campanha ainda parece presumir que as crianças sejam idiotas e vão cair nessa. Se caírem, será só na primeira vez, e então aprenderão outra dura realidade: os pais são capazes de mentir para não assumir suas funções e ainda se esconderão sob a ideia de que só querem ver seus filhos felizes.

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