Você sabe com quem está falando?

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

No romance SÃO BERNARDO, de Graciliano Ramos, o narrador protagonista Paulo Honório, no início do seu relato relembra a origem do acúmulo de capital que o levou a se tornar um rico proprietário de terras. Relata transações embrulhadíssimas resolvidas na ponta da faca ou com o revólver engatilhado. Entre outras, o negócio de uma boiada  com o dr. Sampaio, que o ameaçou com a justiça. ” – Que justiça! Não há justiça nem religião. Ou paga ou eu mando sangrá-lo devagarinho”, rebateu o grande proprietário. Anos depois, Paulo Honório irá travar amizade com o advogado João Nogueira, que usará a justiça para defender o amigo que manda executar camponeses para se apossar de suas terras.

Em 1997 o Brasil ficou chocado com um crime cometido por cinco adolescentes de classe média de Brasília. Após uma balada, eles resolveram se divertir mais e queimaram vivo o índio pataxó Galdino Jesus dos Santo, que dormia nas proximidades da rodoviária da cidade. Alegaram que não sabiam que era um índio, pensavam que fosse um mendigo! Um dos criminosos era menor e não sofreu pena alguma; os outros quatro  foram condenados por um júri popular por homicídio doloso (com intenção de matar). Um dos assassinos, Antônio Novely, era filho de um juiz federal; outro, Max Rogério Alves, enteado de um ex-ministro do TSE; e os outros, Eron Chaves Oliveira e Tomás Oliveira de Almeida, eram filhos de funcionários públicos.

Os quatro foram libertados após cumprirem um sexto da pena em regime semi-aberto com uma série de regalias (como o direito de trabalhar e estudar fora do presídio) não concedidas a outros presos. Hoje todos são profissionais bem sucedidos e se recusam a comentar o crime que cometeram.

Na semana passada noticiou-se a decisão do desembargador José Carlos Paes, da 14a. Câmara Cível do TJ-RJ, que condenou  a servidora do Detran-RJ Luciana Tamburini a pagar uma multa de 5 mil reais por ela ter processado o juiz João Carlos de Souza Correa, do Tribunal de Justiça do Rio, parado por Luciana numa blitz da lei seca em fevereiro de 2011. A servidora processara o juiz, que dirigia um Land Rover sem placa e sem carta de habilitação, alegando que ele “abusou de autoridade” ao lhe dar voz de prisão. No julgamento, o desembargador José Carlos Paes entendeu que a servidora do Detran é que abusara do poder. O juiz João Carlos de Souza Correa, procurado pela imprensa, recusou-se a comentar o caso.

As tramóias de Paulo Honório junto à justiça aconteceram na Zona da Mata alagoana nos anos 20. Os cinco burgueses que mataram o índio eram moradores da Zona Sul da capital federal no final dos anos 90. E a decisão da Justiça carioca contra a servidora Luciana Tamburini acaba de acontecer, pouco tempo depois de o país ter presenciado as regalias concedidas aos envolvidos no escândalo do mensalão enquanto estavam na prisão da Papuda.

A “justiça”, no Brasil, continua ser a dos velhos coronéis, que não atuam mais da sala de estar de suas casas-grandes, mas do alto de suas cadeiras de magistrados ou dos seus privilégios políticos, recorrendo ao arcaico bordão do “Você sabe com quem está falando?”.

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