Você está aqui. Ou, não está nem aí?

Pedro de Santi

O coordenador do curso de Relações Internacionais da ESPM, Rodrigo Cintra, me convidou a participar com ele e alguns outros professores do curso de um encontro com alunos. A ideia era situá-los com relação às expectativas do curso sobre eles no ensino superior e, mesmo, em momentos distintos dos quatro anos que passam conosco. O título “Você está aqui” remete àquelas indicações de localização em mapas de lugares públicos e amplos, para orientar um transeunte eventualmente perdido.

No último dia 20 de março, fizemos dois encontros matutinos e um noturno. O coordenador do curso recebeu os alunos e apresentou a atividade, eu segui com uma fala breve sobre a passagem da adolescência à vida adulta. Em seguida, os professores convidados falaram também brevemente sobre como percebem seus alunos. E então começou a parte mais interessante; passamos a palavra aos alunos. Pode-se dizer que foi um D.R. de R.I..

Cada encontro caminhou de forma própria, tanto pelos momentos distintos do curso, quanto pela participação dos professores. Diferentemente do que se esperava, a atitude dos professores não foi reclamar dos alunos, mas sim trazer de forma muito empática sua própria experiência como estudante de R.I.. As falas dos alunos se dividiram entre reclamações, solicitações e elogios.

O tom geral das conversas foi muito razoável, mas destaco um momento específico que mostra o quanto muitos alunos precisam mesmo ser situados. Um aluno dos primeiros semestres disse: “a faculdade diz que quer que a gente se porte como adulto, mas quando a gente sai da aula porque está achando chato, o professor nos dá falta”. De bate pronto, respondi ironicamente dizendo que precisava lhe contar um segredo: nós, adultos, vínhamos mentindo para ele há anos. Fizemos ele acreditar que a infância era muito chata, pelo seu grau de dependência dos adultos; a adolescência era terrível pela quantidade de pressões e indefinições que viviam. Mas levamos ele a acreditar que, com a vida adulta, viria a tão ansiada liberdade.

Agora, viria a grande revelação e desencanto: tornar-se adulto não tem muito a ver com ser livre. Ser adulto tem mais a ver com ser responsável pelas próprias atitudes e sustentar suas consequências. Sim, somos livres para sair da sala de aula se assim decidirmos, mas então respondemos por isto com o registro da falta. Aparentemente, o aluno entendeu a ironia e não registrou reclamação por bulling, ao menos por enquanto.

Há quem chame de “liberdade negativa” àquela que temos na vida adulta, mas o termo ‘negativa’ não é um juízo de valor. Uma liberdade positiva seria aquela característica do Romantismo: um impulso íntimo e irrefreável que faz com que nos separemos de tudo que nos ata e nos lancemos num destino auto-determinado. A liberdade negativa tem mais o aspecto daquela liberdade nascida no Renascimento: somos livres por sermos livrados no mundo, sem ninguém que olhe por nós. Está mais para “se vira”, do que para “seja você mesmo”.

Lembrei-me de outros dois episódios semelhantes. Um aluno me procurou há anos com a seguinte solicitação: ele havia trancado sua matrícula no semestre anterior, quando deveria ter cursado a disciplina que eu lecionava então; agora, queria ser dispensado de cursá-la. Seu argumento era o seguinte: o motivo do trancamento havia sido um importante intercâmbio que ele fez. Assim, ele não poderia “perder um semestre”, ser punido com a obrigação de fazer as matérias que não cursou naquele período. A faculdade não estimula o aluno a fazer intercâmbio, afinal? Demorei um tanto para entender o argumento e a demanda, mas tive que dizer algo que ele parecia de fato nunca ter ouvido aos 20 anos: quando fazemos uma escolha, por mais correta que seja, seguimos por um caminho e perdemos o outro. O acerto da escolha não nos poupa da privação daquilo que foi deixado de lado. E não se trata da “punição”por uma entidade malvada e invejosa, mas de um fato inexorável.

O outro episódio envolvia um drama recorrente ao final do ano. Alunos se inscreviam num estágio de férias no exterior que os levava a viajar semanas antes do término do semestre letivo. Então, eles vinham solicitar aos professores que antecipassem para eles o calendário de avaliações. A demanda sempre vinha acompanhada do argumento segundo o qual todos os demais professores já haviam aceito, menos eu, que era intransigente. Eu costumava dizer então que uma das funções do curso era introduzir o aluno num modelo de compromisso e cumprimento de requisitos que ele encontraria em seguida em sua vida profissional. As leis de um país ou as regras de uma empresa não se dobrariam aos interesses pontuais deles. Assim acontecia também o com o contrato pedagógico, válido para todos os alunos.

Em todas estas situações, a minha resposta- com ares de “você está aqui”- foi ouvida com respeito, mas então seguida da clássica tréplica: “entendo, mas é que no meu caso…”.

Numa destas situações, uma aluna perdeu a calma e finalmente apontou o crime que eu acabei por reconhecer estar cometendo: “Mas o senhor está sendo impessoal comigo!”.

Temos sempre comentado como uma das grandes dificuldades dos adolescentes que recebemos como alunos passa por aí. Eles possuem muitos recursos e tiveram ótimas oportunidades oferecidas por suas famílias. Mas muitos têm uma dificuldade enorme em fazer escolhas, por não suportarem renunciar a nada. Algo de um espírito onipotente infantil permanece, com o sentimento de que eles tem direito a tudo e todos devem ser sensíveis às suas condições específicas.

Assim muitos têm chegado ao ensino superior e, pior, aos primeiros estágios e vida profissional. Como pais, a título de protegermos de nossos filhos; e como escola, com medo de perdermos o cliente ou sermos mal avaliados; estamos contribuindo para a falta de maturidade, foco e capacidade de decisão e compromisso daqueles jovens. Todo mundo quer tudo ao mesmo tempo agora, não se pode recriminar alguém por isso; mas alguém tem que sustentar a batata quente de operar a transição deste mundo autocentrado à assim chamada realidade. Simbolicamente, tem faltado “função paterna”.

E ainda me esqueci (ou tive vergonha) de contar ao aluno de R.I. que temos contado outra mentira: a de que nós mesmos sejamos plenamente adultos.

Meus cumprimentos ao Rodrigo Cintra pela sua iniciativa de dar voz e escuta aos professores e alunos. Saímos todos melhor situados.

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