Vivi de arte, vivi de amor. A Tosca de Puccini

Pedro de Santi

Tosca é uma das principais peças do repertório operístico. Mesmo com uma ária “hit” em cada um dos três atos- “Recondita harmonia”, “Vissi d’arte,” e, sobretudo, “E lucevan le stelle”- seu centro dramático é o final do segundo ato. Nele, Floria Tosca esfaqueia o vilão Scarpia, que a assediava sexualmente. Assistindo-o agonizar, diz: “Eis o beijo de Tosca! Morra, morra! Está morto. Agora eu lhe perdôo. E ante ele, tremia toda Roma.” Há uma filmagem de Maria Callas no papel em 1964 que é arrebatadora (ver em: https://www.youtube.com/watch?v=IeRNp_yTr34).

Composta em 1900, Tosca está entre La Boheme, de quatro anos antes, e Madama Butterfly, de quatro anos depois. São as três óperas mais conhecidas do compositor italiano Giacomo Puccini (1858-1924), ao lado de Turandot, deixada incompleta pela morte do compositor e executada pela primeira vez em 1926. De certa forma, Puccini deu sequência à tradição deixada por Giuseppi Verdi (1813-1901). Ele próprio dizia que decidiu se tornar compositor ao assistir Aida, aos 16 anos. Embora ele não conte com o mesma consideração entre os especialistas que seu antecessor, suas óperas e árias talvez tenham alcançado uma popularidade maior. Mesmo alguém leigo em ópera reconhecerá com alguma facilidade melodias como “O mio babbino caro” ou “Nessum dorma”.

As três obras primas que escreveu em torno de 1900 tiveram a colaboração dos mesmos libretistas, Luigi Illica e Giuseppe Giacosa. E elas renderam a Puccini a fama de ser um compositor ligado ao realismo: todas mostram situações verossímeis e fortemente passionais. Já em Turandot, Puccini voltou-se a um mundo de fantasia: passada numa China mítica, há personagens chamados Ping, Pang e Pong, no melhor estilo de Marco Polo, nas Cidades invisíveis de Italo Calvino.

Em Tosca, encontramos cenários reais de Roma. É possível visitar o Castelo de Sant’Angelo, na entrada do Vaticano e pisar no pátio alto no qual Cavaradossi foi executado e do qual Tosca se lançou para a morte. Na história, que se passa em 1800, há também referencias políticas, como a simpatia de Cavaradossi pelo pensamento liberal e a guerra contra a invasão de Napoleão.

Nesta trama realista e mundana, todos desconfiam de todos, todos traem, todos são traídos. As personagens principais morrem: Tosca, Mario, Scarpia, Angelotti. Só fica o oficial secretário de Scarpia. Nunca subestime um burocrata: ele é fraco em paixão, mas forte em senso de sobrevivência.

Na narrativa de Tosca, tudo gira em torno da representação e de seu falseamento. Já no início, temos Mario Cavaradossi pintando a capela de uma igreja. Na figura da Madona, ele imprime os traços de Tosca, o que parece uma blasfêmia a seu assistente. Cavaradossi canta a bela ária “Recondita Harmonia”, que celebra a harmonia oculta composta pelas belezas diversas de sua modelo e daquela que é representada.

Quando o assistente sai, Mario descobre Angelotti escondido numa capela: ele acaba de escapar da prisão. Quando chega Tosca, Mario prefere esconder a situação e ela suspeita que ele esteja escondendo outra mulher. No terceiro ato, é ele que suspeitará da fidelidade de Tosca ao questioná-la sobre como conseguiu salvá-lo da pena de morte. Suspeitas, encenações e traições atravessam a obra.

Mas o auge da representação enganosa está no intenso segundo ato. Por proteger e ocultar Angelotti, Mario está preso e será torturado para confessar o esconderijo. Tosca canta numa festa no mesmo palácio, sem saber do que se passa. O vilão Scarpia a chama e conta o que acontece: deixa-a ver Mario e, em seguida, ouvi-lo sendo torturado. Ela então confessa o paradeiro do fugitivo. Mesmo sabendo que ela o fez para salvá-lo, Mario acusa Tosca de traição. O fugitivo, afinal, se mata para não ser capturado e Mario é condenado a morte. Scarpia deseja ardentemente Tosca e faz-lhe a clássica proposta indecente: oferece a vida de Mario em troca de alguns momentos de prazer com ela. Ela reluta e canta sua ária mais bonita: “Vissi d’arte”. Nela, pergunta o que fez para merecer tanto sofrimento, tendo sido sempre tão dedicada à vida, ao amor e à caridade. Ao final, ela cede a Scarpia, mas condiciona o acordo a que ele deixe antes por escrito o salvo-conduto que permitirá que o casal fuja. Enquanto Scarpia escreve, ela toma uma faca; assim que ele se aproxima feliz pela iminência de sua conquista, ela o mata, na cena que descrevi no início deste texto. A mulher que responde à violência sexual matando seu algoz é uma imagem poderosa. A arte de que Tosca viveu também é a da representação.

Finalmente, há a grande farsa do terceiro ato. Scarpia havia dito a Tosca que seria preciso encenar a execução, para que o casal pudesse fugir depois. Ela consegue contar o plano a Mario e orienta sua representação durante a execução. Aliviado, ele se encaminha confiante à cena; quando as armas disparam, ele cai e Tosca elogia sua atuação. Mas ela se aproxima e descobre que o que houve foi a representação da representação da execução. Ela foi real e Mario jaz morto. A morte de Scarpia é descoberta e os guardas sobem ao pátio. Tosca, acuada, lança-se do castelo maldizendo Scarpia.

Com toda a beleza e intensidade da trama, equilibrada ao longo dos três atos, destaca-se a ária “E lucevan le stelle”, cantada por Cavaradossi na madrugada anterior à sua execução. Nela, a noite da execução e o desespero em que se encontra são acompanhados pela lembrança de outra madrugada, esta de amor com Tosca. As expectativas e sensações de ambas são descritas com intensidade e mesmo se confundem, por vezes. Nos primeiros registros gravados- como o de Caruso, em 1904- era preciso cantar sempre alto para garantir a captura do som. Mas, com nossos recursos atuais, os tenores podem explorar uma expressividade maior, com momentos de verdadeira suavidade e melancolia daquele que aguarda pela morte em poucas horas, quando nunca havia amado tanto a vida.

SERVIÇO: Tosca, de Giacomo Puccini. Oitavo encontro do Ciclo Ópera e Paixão, com os professores Pedro de Santi e Celso Cruz. Dia 8 de maio, 16:30, no Auditório Castelo Branco. Vale ACOM.

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