Vítimas/Heróis

Pedro de Santi
Vamos falar de luto, de novo. É inevitável: as perdas se impõem a todo instante e desacomodam nossa capacidade de esquecimento. A despeito de nosso compromisso com a vida e sua qualidade, quase toda conversa terapêutica ou sobre amadurecimento é, afinal de contas, sobre lutos e perdas.
Perda de vidas, perda de empregos, perda de ideais. Tudo a isto a nos fazer lamentar pelo que fica para trás (ou quem fica para fora) e nos lembrar da fragilidade de tudo que gostamos de imaginar ser estável.
Há uma semana, toda a pauta da mídia e de muitas de nossas conversas convergem para a queda do avião que levava o time da Chapecoense, acompanhados de dirigentes, jornalistas e equipe de bordo. 76 mortes.
O fato em si vem envolvido num contexto que dá cores maiores ao drama. O time vinha numa ascensão de alguns anos que culminava na primeira disputa de uma final de campeonato internacional. Com isto, a cidade como um todo ganhou notoriedade nacional. No fim de semana imediatamente anterior, o time protagonizou a disputa que marcou o desfecho do campeonato, ao jogar com o Palmeiras. O jogo deu uma visibilidade ainda maior ao time e seus jogadores.
E então a queda com a morte de quase todos, com a milagrosa sobrevivência de 5 pessoas, algumas das quais ainda sob risco.
Muitos jogadores jovens, com um futuro de sucesso à mão. Muitos jornalistas de vários veículos de comunicação. E tem chamado a atenção o quanto jornalistas têm morrido no exercício de sua profissão, sobretudo em situações de guerra, onde viram alvo justamente por veicularem notícias e imagens que dificultam a construção das versões dos atores envolvidos.
Como não poderia deixar de acontecer, todos buscam sentido a alguma referência: foi lembrado que faz exatamente 20 anos que um avião da TAM explodiu no aeroporto de Congonhas. E corremos atrás de uma explicação. Tivemos situações relativamente recentes de acidentes aéreos que não tiveram explicações e, mesmo, permitiram que se recuperassem os corpos. Neste caso, vai se consolidando a hipótese de que o avião tenha caído por falta de combustível. Por uma questão de economia, o piloto teria voado sem margem de segurança para qualquer eventualidade. Ele assumira este risco outras vezes e se deu bem; nesta, morreu e levou à morte dezenas de pessoas. Cortar gastos é algo muito importante, mas certamente não deve ser o único critério na condução das coisas.
A condição de vítimas de algo que já não merece ser chamado de acidente é terrível. Ser pego de forma passiva e estar à mercê de algo sem qualquer forma de controle é um pesadelo básico de todos nós.
Mas então, as vítimas passaram a ser ressignificadas como heróis. Foram vistas homenagens em várias partes do mundo. Uma solidariedade nacional, e mesmo internacional, chegou a nos surpreender.
Na recepção dos corpos para o velório, os discursos remetiam ao mito do herói: jovens corajosos, que foram além do limite estabelecido, conquistaram a glória e morreram tragicamente. Cumprida sua jornada humana, vão se tornar lendas.
Os rituais coletivos produzem um acolhimento importante às famílias; a chuva pesada que caia foi significada como lágrimas do céu.
É notável nossa capacidade de tentar responder ao absurdo, criar narrativas que dêem sentido, contexto e conforto ante a realidade da perda.
Este trabalho é necessário, mas é preciso lembrar duas coisas. Em primeiro lugar, para aqueles que perderam um ente querido neste acidente, provavelmente o luto ainda nem começou. Ainda deve ser o tempo da incredulidade. Esperemos que os rituais coletivos estejam ajudando a ficha a cair. Em segundo lugar, a hiper-exposição da mídia pode ter o efeito contrário ao esperado: ao invés de ajudar no processo do luto coletivo, banalizar as imagens ao reitera-las à exaustão, o que pode priva-las de poder de produzir significação. Ao entrar na massa dos posts de Facebook que viralizam, as informações se exaurem e são esquecidos, sem terem sido digeridos ou terem podido produzir transformação.
Processos de luto nos transformam, fugir deles nos condenam a repetir e repetir os mesmos fracassos. Não foi acidente.

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