Uma polícia que se impõe pelo medo

Carlos Frederico Lucio

Para aqueles que moram, como eu, em bairros de classe média da paulicéia não é muito frequente presenciar cenas chocantes de ação policial. Por isso, é de assustar quando você se depara com uma ação truculenta de policiais militares, bem ao seu lado, em plena rua movimentada numa tarde ensolarada, próximo do horário de almoço. Confesso que fiquei bem tenso com o que presenciei.

Subindo tranquilamente uma das principais ruas da zona oeste de São Paulo (Teodoro Sampaio), rumo ao metrô, começou uma movimentação alvoroçada de motos e viaturas da PM. A rua estava abarrotada de gente, até porque tudo aconteceu próximo às instalações de um dos maiores complexos hospitalares da América Latina (o Hospital de Clínicas da USP) e o IML. Era horário comercial, por volta das 14h00m de um dia de início de semana. Para uma viatura próximo à calçada e, do nada, saem uns policiais com fuzis e revólveres, partem uns 5 deles em direção a um único senhor (negro, claro) que estava andando na calçada. Empurraram-no contra a parede. Revistaram-no de forma bem bruta e truculenta, humilharam-no. As pessoas passavam pela cena, desviando-se das armas e dos policiais sem ter muito o que fazer. Isso, por si só, já é de uma falta de bom senso imperdoável: como policiais sacam armamento pesado no meio da multidão? Não havia o menor indício de que algo violento estivesse acontecendo que justificasse esta atitude. E, de fato, parece que não era nada porque logo liberaram o homem. A nítida impressão que tive é de que era um “circo” para poder justificar algo que não consigo imaginar.

Eu, acompanhando tudo do outro lado, louco para filmar com o celular, mas cadê coragem! Todos os policiais estavam armados até os dentes. E eram muitos (contei, pelo menos 3 viaturas, e umas quatro motos). Isso, sem mencionar algumas que haviam subido momentos antes a rua entrando no Av. Dr. Arnaldo.

Continuei subindo em direção ao metrô. Um misto de indignação, revolta e medo. Mas a coisa não parou aí. Eles avançaram um pouco mais na rua, novamente pararam próximo a mim (do outro lado da rua), desta vez em frente à Faculdade de Medicina da USP. Novamente, uns 5 policiais encostaram outro senhor (negro, claro) contra a parede e a cena se repetiu. Foram chegando mais viaturas e motos. Perdi a conta de quantos eram. Não sei se o senhor abordado era bandido ou não. Mas o que vi, me revoltou! Ele estava desarmado (porque tiraram tudo dele e jogaram seus pertences no chão). Desta vez, algemaram o cara e o colocaram numa viatura. Em nenhum momento ele resistiu a qualquer das grosseiras investidas dos policiais.

Enfim, era uma truculência que me fez duvidar que estamos vivendo num estado democrático de direito. E quantidade e tamanho das armas me assustou. Pessoas aos montes passavam pela calçada, cabeças baixas – algumas expressavam o mesmo medo que eu. Não tenho vergonha de confessar: me bateu um baita medo de sair, do nada, um tiroteio e que uma tragédia acontecesse. E nojo de pensar no quanto uma operação destas estava custando aos cofres públicos.

Esta cena aconteceu num momento em que havia poucos dias eu fora convidado para fazer uma palestra no grupo de política do Diretório Acadêmico da faculdade exatamente sobre a desmilitarização da polícia. Este tema, lembremos todos, ocupou muito a cena social, política e midiática da sociedade brasileira em 2013 por ocasião do início das manifestações, sobre a desmilitarização da polícia. (Confira o dossiê que disponibilizei num link abaixo.)

Falar de polícia é mexer com a Constituição, uma vez que nela existem alguns dos artigos que regulamentam a área de segurança como uma das obrigações do Estado. Mais do que isso, é mexer numa tradição autoritária e, muitas vezes, truculenta que marca a presença do Estado na vida das pessoas. Por este motivo, existem algumas Propostas de Emenda Constitucional (as chamadas PECs) propondo alterações nas Polícias. Delas, uma das mais completas é a PEC-51.

Uma das principais justificativas para estas propostas são justamente as críticas à atuação truculenta da PM (exatamente como a que presenciei): esses caras são treinados, pela ideologia militar, a tratar a sociedade como um inimigo a ser combatido e a ser eliminado. Em atos como os que presenciei, parece que o que está diante deles não é um cidadão. Não tem direitos a serem respeitado. Isso não existe nesta ideologia! Ainda que tenha praticado algum crime sério, o Estado não pode simplesmente jogar suas leis na lata do lixo e, mesmo que com a autoridade policial, fazer justiça com as próprias mãos. Decidir se o indivíduo a ser abordado é ou não bandido não é seu papel! Isso é de um autoritarismo inaceitável. É de uma violência asquerosa. E é isso o que compromete fundamentalmente a imagem e a atuação da Polícia Militar.

Fundado no preceito teorizado por Weber no campo sociológico na virada do século XIX para o XX, uma marca do Estado moderno é justamente a necessidade de forças auxiliares para a manutenção da ordem (seja a “sua” ordem; seja a ordem democrática). Um dos pressupostos da teoria política de Weber é a ideia do Estado como detentor do monopólio do uso da força. Nas palavras do autor:

“Sociologicamente, o Estado não se deixa definir a não ser pelo específico meio que lhe é peculiar, ou seja, o uso da coação física. A violência não é o único instrumento de que se vale o Estado, mas é seu instrumento específico. Todo Estado se funda na força. O Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito o monopólio legítimo do uso da força.”

Max Weber, A política como vocação

É assim que, dos exércitos constituídos para garantia da soberania, fronteiras e demais temas de interesse do Estado até a constituição de polícias internas para manutenção da ordem (ideia que, na modernidade, teria surgido quando da Revolução Francesa e a criação da Gendarmerie Nationale para a segurança do “cidadão” – e não apenas do Estado – uma vez que este era um dos preceitos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão) os Estados contemporâneos tem mantido esta prerrogativa do monopólio do uso da força. No Brasil, a primeira guarda independentemente do exército teria sido a  criada por D. João VI (1809), que foi a Guarda Real da Polícia. A partir daí, uma série de desdobramentos vai levar à sua criação nas províncias (a partir de 1831) até que estas divisões são regulamentadas pela Constituição de 1891, da República oriunda de um golpe militar. É nesse momento que, pela primeira vez, o termo “militar” é incorporado, passando-se à denominação de Corpos Militares de Polícia. A partir de conflitos como a Guerra do Contestado e a necessidade que o Exército brasileiro teve do apoio das polícias regionais, foi estabelecida esta vinculação entre elas e o exército brasileiro, o que persiste na nossa atual Constituição. Paralelamente, foram surgindo forças de auxílio no patrulhamento e investigações criminais que deram origem ao que chamamos hoje de Polícia Civil. Além disso, tivemos no período da ditadura militar o incremento do papel militar da polícia nos estados da federação, o que hipertrofiou nessas forças uma certa ideologia da truculência e do desrespeito aos direitos civis dos cidadãos que, em tese, elas pretendem proteger. Foi com a ditadura, portanto, que as atribuições da Polícia Civil foram se esvaziando e a Militar tomou para si toda a parte ostensiva pela qual hoje ela é bem conhecida.

Atualmente, no Brasil existem 3 tipos diferentes de polícia com suas atribuições distintas de acordo com a Constituição:

 

1) Polícia Civil: exerce fundamentalmente a função de polícia judiciária (podendo ser apoio nas operações ostensivas);

2) Polícia Militar: são forças de segurança pública que têm por função a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Além disso, elas são, para fins de organização, forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro.

3) Polícia Federal: subordinada ao Ministério da Justiça, cujas funções, de acordo com a Constituição de 1988, são: exercer a segurança para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas, bem como dos bens e interesses da União; exercer atividades de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; promover a repressão ao tráfico de entorpecentes, contrabando e descaminho; exercer com exclusividade as funções de polícia judiciária da União.

 

Como se vê, a grande questão que entra em jogo quando se fala de “desmilitarização” das polícias é justamente a subordinação das Polícias Militares ao Exército. Mais do que uma questão meramente operacional, o que está em questionamento é o tipo de ideologia e valores que estas forças policiais recebem em seu treinamento e formação. Como dito acima, o Exército é treinado para eliminar o inimigo, combatê-lo. A força bruta é o seu principal meio de atuação. E este valor vem sendo passado de forma cada vez mais intensa para as Polícias Militares. Até por conta do acirramento da “guerra” contra o narcotráfico que se instaurou em várias cidades brasileiras.

Entretanto, é preciso pensar com muito vigor a necessidade da construção de uma polícia mais humanizadora. Uma polícia que consiga vencer o desafio de cumprir suas obrigações legais, garantindo o direito à segurança do cidadão, ao mesmo tempo em que combate as várias formas de crime que ameaçam esta mesma segurança.

Para os defensores da desmilitarização (e eu sou um deles), uma polícia única, com um treinamento e preparo mais voltado para a cidadania não impediria que ela cumprisse seu importante papel no policiamento ostensivo. Muito pelo contrário: melhorando sua imagem junto à população, ela poderia ter aí um importantíssimo aliado no desempenho de suas funções.

Atualmente, é perceptível o grande medo e um certo asco que a população de São Paulo tem de suas forças policiais. São Paulo se vangloria de ser o mais rico e o mais desenvolvido estado da nação, mas com uma política de segurança pública que consegue ser pior do que a época da ditadura.

Pior porque, em tese, estaríamos numa democracia e cenas como essas jamais deveriam acontecer.

No mínimo, é preciso resolver o paradoxo do medo! Em uma sociedade democrática este, me parece, o pior dos medos: o medo das forças do Estado. Quando se chega neste estado de coisas, com quem devemos contar para nossa segurança?

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