A artista plástica Lygia Clark está sendo homenageada com uma belíssima mostra no Itaú Cultural (até 11/novembro). É a realização de um sonho poder interagir com obras que influenciaram toda uma geração. Seu pioneirismo e ousadia impressionam até hoje pela coragem de oferecer ao espectador as sensações sensoriais e estéticas tão preciosas e únicas. E nada mais atual do que vivenciar e se chocar com seus experimentos em pleno século XXI que na contra mão sobrecarrega os olhares de imagens virtuais. A seguir uma crítica sensível de quem não só a admirava mas que era seu amigo e compartilhou momentos importantes da vida de Lygia que é Ferreira Gullar
Profa. Silvana Novaes
Uma experiência radical
No momento em que o Itaú Cultural oferece ao público de São Paulo uma retrospectiva da obra de Lygia Clark, aproveito para dizer algumas coisas que, talvez, ajudem a apreender certos aspectos de sua experiência estética.
Como se sabe, essa experiência começa na década de 1950, quando surge no Brasil o interesse pela arte concreta, que tinha como seu principal difusor o crítico Mário Pedrosa.
Seu apartamento, em Ipanema, tornou-se o ponto de encontro de uma nova geração de artistas, entre os quais Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abraham Palatnik, a que se juntaram em seguida Franz Weissmann, Amilcar de Castro, Aluísio Carvão, Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Em São Paulo, o líder era Waldemar Cordeiro.
Entre os dois grupos surgiram algumas diferenças, em função mesmo do modo de ver essa tendência artística seja por Pedrosa, seja por Cordeiro. A verdade é que, como consequência disso, os concretistas do Rio desenvolveram sua experiência numa direção menos ortodoxa, da qual resultou o movimento neoconcreto.
O traço distintivo do neoconcretismo era, sobretudo, a participação do espectador na obra de arte, ou seja, ele não apenas a olhava como também podia manuseá-la. Isso veio do livro-poema que, por ser livro, era manuseável. Mas Lygia só adotou esse procedimento porque ele a ajudava a superar o impasse a que havia chegado em sua pintura.
A questão é complexa, mas vou tentar formulá-la da maneira mais simples possível. De fato, a coisa começa com a opção feita por Mondrian, Malevitch e outros pintores pela pintura não figurativa construtiva. Em Malevitch, a questão se coloca claramente quando ele pinta um quadrado negro sobre um fundo branco. Eliminava a figura? Não, a relação figura-fundo continuava.
Ele tenta superá-la ao pintar um quadrado branco sobre um fundo branco, mas nem assim eliminava o problema. A solução que encontrou foi sair do quadro e passar a construir no espaço real; são as “construções suprematistas”.
Mas que tem isso a ver com Lygia Clark? É que, como Malevitch, ela também se defrontou com a necessidade de superar a relação figura-fundo em sua pintura. Chegou a isso por outros caminhos, mas é que esse problema está na essência mesma da nova linguagem construtiva da pintura.
Lygia havia, antes, enfrentado a contradição entre o espaço pictórico e o espaço real. Foi quando ela integrou a moldura no espaço pictórico.
A partir de então, construía seus quadros, não mais em tela, mas em placas de madeira, para nele introduzir o que chamou de “linha orgânica” (o que antes era o espaço vazio entre a tela e a moldura).
Não obstante, a contradição entre figura e fundo se mantinha. Tentou superá-la com ajuda de Josef Albers, valendo-se de suas construções ambivalentes, em que o fundo ora é figura, ora é fundo, e vice-versa.
Deu um passo adiante quando abandonou o quadro de madeira para fazê-lo em metal, o que lhe permitiu construir os “casulos” (pequenos “quadros”, onde a dobra do metal cria um espaço interior). Mas ainda era um quadro: tinha a parte de trás, voltada para a parede.
Nos “Bichos”, isso já não existe. Eles não têm avesso, base ou forma única estável, porque são manuseáveis. Foi por essa razão que, naquela época, escrevi que o “bicho” era “uma imobilidade aberta a uma mobilidade aberta a uma imobilidade aberta”.
Ela desenvolveu a ideia dos “Bichos” numa série muito criativa, que ultrapassou os limites da proposta inicial. Foi o início de uma aventura que, a cada momento, surpreendia a ela mesma, levando-a à participação não apenas manual, mas agora corporal. Ela caminhava assim para um tipo de expressão que desconhecia limites, mas estranhamente coerente.
Agora, em lugar a obra manuseável, inventa invólucros que vestem o espectador (não mais espectador e, sim, partícipe) ou túneis de tecido plástico por onde ele penetra. Enfim, ela quer provocar sensações outras, sensoriais e psíquicas, que, em vez de visar o prazer estético, visa a cura, a revelação profunda do sujeito, a reestruturação do “self”.
Não por acaso, ela mesma dizia que já não fazia arte. Mas nada tinha a ver com a antiarte de Duchamp.