Pedro de Santi
Serviço. Cinecom: Tomboy. A (des)construção do feminino. Os professores João Carlos Gonçalves (Joca) e Pedro de Santi realizarão uma reflexão semiótica e psicanalítica sobre o filme, no dia 17/10, às 14:00 hs., no auditório Victor Civita.
“Tomboy” é um filme francês de 2011, dirigido por Céline Sciamma: a expressão é usada para designar meninas com jeito de menino.
O filme traz de forma poética a situação de uma menina de cerca de dez anos que se vê como menino e procura sustentar esta identidade dentro de um novo grupo de amigos. Li numa crítica do site Adorocinema que o filme trata de homossexualidade, numa fase da vida em que a sexualidade ainda não surgiu. Discordo das duas afirmações. A personagem não é uma menina que deseja outras meninas, mas alguém biologicamente do sexo feminino que se vê como menino; ou seja, se fizermos questão de atribuir um rótulo, trata-se de transexualidade. E a sexualidade infantil exala por todo o filme. O filme remete a um ótimo filme belga chamado “Minha vida em cor de rosa” (1997), de Alain Berliner.
Para um psicanalista, é comum pensarmos que a identidade de gênero se consolida por volta dos seis ou sete anos. Sem entrar aqui na dinâmica do que determina a definição de gênero, guardemos apenas a evidência da variedade de expressões identitárias e de desejo. Ela impõe o reconhecimento de que entre a gênero genético e a identidade de gênero não há um destino natural e automático. Filmes que evocam o tabu da sexualidade infantil e a noção de que uma identidade de gênero não reduzida ao determinismo biológico esteja consolidada tão precocemente são sempre provocativos; eles oferecem uma oportunidade de desfazer estereótipos supostamente fundados na biologia e na religião.
Vamos ao filme. Quem não quiser spoilers, que pare por aqui.
Há ambivalências e inversões de expectativa desde a primeira cena. Mas, a princípio, trata-se de uma família normal que chega a um novo lar. Um casal e duas filhas. Pouco ou nada temos sobre a história anterior deles, temos apenas contextos presentes.
Uma identidade masculina se afirma sobre um corpo de menina. Laure, a filha mais velha de corpo andrógino, sai à rua e é reconhecida como menino; instantaneamente assume a identidade e se apresenta como Michael com naturalidade, ainda que com medo de que se revele seu segredo.
O desejo circula entre as crianças. Mas não é na personagem principal que isto se evidencia. É na amiga Lisa, a primeira a se dirigir à protagonista com visível interesse e a reconhece como Michael. O maior desejo de Michael neste momento é anterior: existir, ser reconhecido como menino dentro de um grupo. O discurso do desejo erótico circula forte e ludicamente entre os amigos. Lisa é a única menina do grupo, o objeto do desejo de todos, mas é pelo enigmático Michael que seu desejo é atraído.
Pai e mãe amorosos aparecem invertidos em suas funções. O pai é o lugar do afeto e acolhimento no qual Laure pode se permitir regredir e mostrar fragilidade. A mãe grávida, vestida do mais específico destino biológico da mulher, encarna a repressão e a subjugação do desejo pela adaptação às normas sociais; a vergonha, a culpa, as desculpas. É ela que repreende Laure quando a situação é descoberta, fazendo-a se desculpar a todos os envolvidos. A repressão é ostensivamente representada pelo fato da mãe impor que seja posto um vestido de Laure sobre as roupas que Michael usa. Ela se torna então numa menina que é um menino travestido de menina.
O falo é o significante de uma falta. O chavão lacaniano remete a quanto os seres em falta, simbolicamente castrados, recorrem a substitutos imaginarizados. Mas o simples recurso a símbolos não faz mais que evidenciar a nossa auto-insuficiência. E a cena em que ele recorre à massa de modelar para forjar o volume de um pênis num calção é bela em sua fronteira entre a infantilidade da massinha e a necessidade de sugerir o membro masculino. O mais elementar significante da castração simbólica, reafirmado no depósito da prótese na mesma caixa que guarda os dentes de leite caídos.
O calção, por sua vez, fora feito a partir de um maiô cortado com uma tesoura. Aqui, invertendo a representação convencional, o corte da castração transmuta o (traje) feminino em masculino.
A masculinidade pretendida é desvelada e o jogo sofre a humilhação pela mãe. A feminilidade revelada é vivida como redução e expõe a personagem imediatamente à violência masculina do grupo. O ressentimento por terem sido enganados é vingado.
O que para Michael/Laure era a expressão de uma realidade é visto por todos como farsa e transgressão.
A irmã menor, futura irmã do meio, é classicamente infantil e feminina. Mas também esperta e pragmática. Não sendo a mais velha ou a caçula, ela precisará mesmo ser safa para garantir seu lugar no mundo.
O masculino se desloca. O pai fisicamente afetivo brinca com a filha de estereótipos masculinos; põe no colo para dirigir, oferece cerveja, joga baralho. A mãe está grávida numa família que já tem duas meninas; a fantasia de desejo de um menino circula pelo ambiente familiar. A deposição da persona masculina Michael se dará ao mesmo tempo que em que um menino, afinal, nascer.
Neste momento, Michael se (re)apresenta como Laure, para a mesma amiga. E o interesse inicial, de alguma forma, persiste. Alívio para Laure. Para Lisa, o enigma era Michael, agora, talvez venha a ser seu próprio desejo: então ela havia se interessado por outra menina?