Tiros em Suzano. Games e cultura da bala

Pedro de Santi
Neste ano já tão difícil e de alto potencial traumático, vivemos nova tragédia. Dois jovens entraram numa escola em Suzano mataram várias pessoas a tiros, machadadas e flechadas. Em seguida, mataram-se.
Como em todo acontecimento que envolve a morte de seus autores, jamais teremos acesso ao sentido específico e pessoal que moveu aqueles jovens a isto. Eles já estão fora de nosso alcance. Tudo o que pudermos dizer aplica-se também a milhares de outras pessoas, que não saíram ou sairão fazendo o mesmo.
Mas nossa mente não se conforma e corre para encontrar sentidos. Fazemos o que for necessário para não permanecermos entregues ao vazio traumático. Sobretudo, inventamos sentido de acordo com nossos sistemas de valores; isto, é claro, protegendo nossos pontos cegos.
Na busca por reconhecimento de algum padrão, o mais imediato é nos lembrarmos de um paradigma: a invasão de uma escola por ex-alunos ressentidos com uma violência vivida que, então, matam aleatoriamente muitas pessoas e depois se matam. Embora isto aconteça em muitos lugares do mundo, há uma concentração notável de episódios assim nos EUA. A quem não conheça o paradigma, recomendo dois filmes baseados num mesmo episódio: “Tiros em Columbine” (Documentário premiado com o Oscar, de Michael Moore, 2002) e “Elefante” (Ficção de Gus Van Sant, 2003).
Trata-se do modelo da violência sofrida na infância, a percepção da ausência de proteção, uma cultura que glorifica as armas e tem o acesso fácil a elas, até em sites de compra pela internet.
Boa parte do que li na imprensa e nas mídias sociais a respeito foi no sentido responsabilizar o abuso de uso dos Games. Ainda que se possa pensar na influência deles, no contexto que vivemos no país, esta me pareceu uma resposta “fácil” demais, que nos exime de responsabilidade, como sociedade.
Os games, como o nome diz, evocam uma dimensão lúdica e simbólica, na qual inúmeras experiências e afetos que não podem ser vividos passam a sê-lo, sem o peso da passagem ao ato. Eles podem possibilitar a catarse de impulsos primários que não devem ser expostos e vividos, muito especificamente, a agressividade.
Nossa agressividade é gerada como reação a situações em que nos vemos ameaçados, invadidos, roubados. Se somos violentados, reagimos com violência. A mediação social regula, em cada cultura ou contexto, as modalidade de expressão da agressividade que se pode expor (o mesmo vale para sexualidade), assim como quem pode usar qual tipo dela (a polícia, o cidadão comum).
Há, inevitavelmente, um grande resto não expresso destes impulsos primários em nós, em busca de expressão. Uma das maiores funções dos jogos (e de outras artes) é criar um ambiente protegido e inofensivo para sua vazão. Sem o recurso aos jogos, são acionadas outras expressões mais primitivas e próximas à passagem ao ato.
Se jogos provocassem violência, não teríamos episódios isolados, mas massas de jovens assassinos, há décadas.
Dos jogos à violência real, seria preciso conceber uma dupla operação: a criação de uma identidade aderida ao padrão da violência, e a redução da capacidade de simbolização; ou seja, a perda do distanciamento do jogo e uma adesão delirante ao seu conteúdo. Ou seja, o jogo deixa de ser um jogo.
Há quase 20 anos tivemos uma tragédia quando um jovem estudante de medicina atirou um muitas pessoas durante uma exibição do filme “Clube da luta” (David Fincher, 1999). Muitos tentaram culpabilizar a violência do filme, mas milhões de pessoas assistiram e seguem assistindo ao filme e não sofreram aquela influência.
Se quisermos pensar numa cultura da violência, teremos que ir bem além dos jogos e filmes, em direção aos ideais que têm sido cultivados em nosso país.
Muito se tem falado sobre o recrudescimento da intolerância e da violência nos últimos anos, por parte de todo o espectro político.
No momento específico, parte da sociedade civil se vê à mercê de violência e desprotegida pelas forças públicas, o que gera uma pressão por respostas individuais de proteção. Em certos extratos da sociedade, há uma glorificação das armas, nos padrões norte-americanos, e projetos concretos para flexibilizar o acesso a elas pela população civil, à título de fornecer proteção pessoal.
Noticiou-se também que os assassinos de Suzano frequentavam grupos na internet de estímulo à violência.
Neste contexto, apontar o dedo para os jogos quando jovens saem por aí atirando parece que entra no campo dos “pontos cegos” que citamos acima. Funciona como um fetiche; a manutenção da percepção em algo que nos distraia, para evitar o confronto com o que nos aflige e está diante de nossos olhos.
Nossa intolerância e violência crescente indicam que estamos justamente falhando na capacidade de “jogar”, ou seja, lidar simbolicamente com afetos e relações.
Imaginar que o aumento de armas em circulação nas mãos da população civil seja uma forma de combater a violência soa quase delirante, sobretudo por estar sendo dito também por muitas pessoas inteligentes e não violentas. E a sociedade como um todo será cúmplice (nós seremos cumplices) dos futuros episódios trágicos como o de Suzano, que tenderão a aumentar.

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