Sobre automóveis

Por Gianpaolo Dorigo, Professor do Anglo Vestibulares

Sempre imagino que as gerações futuras irão rir de nós: inventamos uma civilização tecnológica na qual um indivíduo, para se deslocar, leva consigo uns 800 quilos de ferro, aço, plástico e vidro, e ainda por cima emite poluentes no processo. A irracionalidade  da coisa toda é escandalosa.  Automóveis são, ao mesmo tempo, desastres ambientais e urbanísticos. Necessitam de largas vias asfaltadas (isto é, de solo impermeabilizado) para circular. Estimulam a agressividade e o individualismo, e se levar em conta as condições de produção de automóveis na indústria, seja fordista ou toyotista, imagino que o desastre seja também social.

Tenho vontade de chorar sempre que constato que, na cidade onde vivo, sou obrigado a possuir um automóvel, devido à absoluta precariedade do transporte público (entenda-se: insuficiência dramática de linhas de metrô). Por pior que seja, sem automóvel meu deslocamento pela cidade se tornaria ao mesmo tempo mais restrito, arriscado e dispendioso em tempo. Sendo assim, tenho que suportar o constrangimento de possuir um automóvel.

O surgimento de uma nova geração de automóveis, compactos, me dá um pingo de otimismo para enfrentar o apocalipse motorizado. Gosto de pensar que a posse de um mini carro possa ser considerada como um humilde manifesto contra a cultura dos carros e carrões, das cilindradas e potências, dos SUVs e da lei do mais forte. Sendo assim, eventualmente compro carros, compactos.

É quando percebo um dos aspectos mais constrangedores do complexo automobilístico: a venda para o consumidor final. Trata-se do mundo pervertido e sorridente das concessionárias, com seus vendedores entusiásticos vendendo carros e  contribuindo para a destruição, mas sempre sorrindo e oferecendo um cafezinho a cada etapa.  Imagino que aqui não existam relações verdadeiras, mas apenas um mundo estranho feito de sorrisos, abraços e felicitações, sob balões coloridos.

No mundo nebuloso das concessionárias, apesar dos sorrisos eternos (e congelados) nenhum humor é possível. Na concessionária, ao constatar que meu veículo novo, Fiat 500, é “cinza”, procuro na tabela de cores seu nome oficial. Os técnicos de marketing da Fiat são bastante originais em nomear as cores, e batizaram meu cinza de grigio sfrenato. Sorrio e pergunto ironicamente para o vendedor, “Mas o freio desse carro é bom mesmo?”. Não sou compreendido, porém ele continua sorrindo.

O rapaz que me apresenta o painel de instrumentos e suas infinitas funções (das quais usarei umas 10%, se tanto), é entusiástico como todas as pessoas na concessionária. Lá pelas tantas ele me apresenta o botão “ESC”, que devo acionar quando quiser diminuir o risco de capotagem. Pergunto o que aconteceria se eu o deixasse desligado, e o rapaz, sorridente e incapaz a de prestar a mínima atenção no que eu dizia, continuou concentrado, recitando seu mantra agora sobre as múltiplas funções do computador de bordo.

Finalmente, já ia saindo quando o vendedor me alcançou e disse, inclinando-se sobre a janela: “Parabéns pelo carro. Você merece!”. Aquilo foi demais. Disse: “Não, eu não mereço. Talvez eu seja uma pessoa má! Talvez eu tenha cometido crimes, o que você sabe de mim?”.

Sem saber responder, ele continuou sorrindo.

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