Símbolos religiosos: por uma crítica legítima a formas de dominação e controle

Carlos Frederico Lucio

Esta semana vivenciamos mais um episódio que ganhou repercussão devido às mídias sociais. Na minha opinião (ao contrário de muitos depoimentos que li), não o entendo como menor ou sem importância. Pode até ser que tenha ganhado proporções exageradas como quase tudo que “cai na rede”. Independentemente disso, ele revela algo importante: a dificuldade que nós temos, como indivíduo e como sociedade, em nos colocarmos no lugar do outro, principalmente quanto o tema do debate envolve crenças e valores religiosos. E, como é comum acontecer, abre espaço para a intolerância, principalmente se o alvo da crítica é uma crença ou valores que considero fundamentais para a minha existência.

Na 19ª Edição da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, ocorrida no último dia 07/06, um carro de som chamou a atenção e provocou reações as mais diversas. Em resumo, uma jovem atriz transgênera de 26 anos (Viviany Baleboni) causou espanto por se prender, seminua, em uma cruz, reproduzindo a encenação do sofrimento de Jesus Cristo. Segundo depoimento ao portal G1 (conferir na íntegra), ela teve a intenção de “representar a agressão e a dor que a comunidade LGBT tem passado. Nunca tive a intenção de atacar a igreja. A ideia era, mesmo, protestar contra a homofobia.”

Eu estava na esquina das ruas Fernando de Albuquerque com a Consolação, acompanhando toda a passagem dos carros e a multidão que os seguia, quando a imagem me saltou aos olhos. Confesso que achei-a impactantemente bela e politicamente ousada. Aquilo mexeu comigo, muito. Não no sentido da reação trivial que a maioria das pessoas têm. Mexeu emocionalmente. E tem a ver com um pouco da minha história de vida.

Atualmente definindo-me como agnóstico, sou herdeiro de uma formação católica bastante forte. Quando adolescente, inspirado por esse clima familiar, quis ser padre. Entrei para o seminário no auge do momento da Teologia da Libertação. Período em que a Igreja vivia um dos seus mais efervescentes momentos de comprometimento social, na luta pelos pobres, marginalizados e toda a sorte de excluídos da sociedade. Éramos de uma geração que assumiu essa bandeira com toda a força. Nesse sentido, o Cristo em que acreditávamos era um Cristo do comprometimento com o ser humano, com a dignidade das pessoas; a compaixão na aceitação do outro (o excluído, sob que forma fosse). E o que muitas vezes víamos na prática das igrejas, era o Cristo do formalismo, da crença vazia, do moralismo que dita normas muitas vezes contrárias a esta dignificação do ser humano e que, quase sempre, traz a intolerância ao diferente; sem falar no Cristo da hipocrisia. Um Cristo que envergonharia o próprio Cristo. [Como jovem – tinha entre 17 e 18 anos – eu me espelhava muito na belíssima, singela e emocionante versão do Zeffirelli sobre São Francisco de Assis em “Irmão Sol, Irmã Lua”. Era exatamente contra aquele formalismo hipócrita, tão típico de muitas práticas religiosas, que lutávamos. E, não nos esqueçamos, que foi exatamente por causa disso que Francisco foi rejeitado pelos seus.] Isso me levou (e a muitos dos meus colegas) a desistir daquele projeto de vida. Durou pouco, minha passagem pelo seminário. Não obstante, com o aprofundamento dos meus estudos de Filosofia e Teologia, eu aprendi muito sobre a natureza da Religião (tema que adoro). Mas nenhuma ciência me deu tanta clareza sobre isso quanto a Antropologia. Encontrei aí a chave que tanto buscava para entender o fenômeno religioso na sua essência: a enorme diversidade e a riqueza das crenças humanas é algo realmente encantador. Não fosse a consequente natureza sociopolítica das religiões (formar grupos em torno de crenças que se colocam – quase sempre – como superiores e, com isso, acentuam a segregação, disputas e guerras entre si), eu diria que ela deveria trazer para o ser humano o verdadeiro sentimento de pequenez frente ao mundo: afinal, todas elas nos falam sobre a transcendência, sobre aquilo que é maior que nós mesmos, colocando-nos como “criaturas” pequenas, aptas à expansão existencial quase infinita. E a Teologia da Libertação trazia para dentro da Igreja Católica (e de algumas denominações protestantes que também a abraçaram, como a Igreja Luterana) esse sopro de humanidade tão abandonado pelo formalismo dos seus templos.

Voltando ao tema do texto, a partir desta bagagem católica (crítica) como experiência pessoal, enxergar aquela mulher crucificada bateu-me como uma licença poética. Emocionou-me muito. Com toda sinceridade, eu considerei o único momento digno e autêntico de toda a Parada. Talvez por esse motivo, nem de longe tenha me passado pela cabeça que pudesse ser uma agressão, muito pelo contrário. Era Revolucionário (sim, com “R” maiúsculo!). Até porque conheço relativamente bem o ativismo gay em São Paulo e a luta que se tem travado no país não somente para garantir direitos básicos (vilipendiados em nome de uma religião formalista em um estado hipocritamente dito laico) mas também contra os alarmantes indicadores de violência por homofobia no Brasil. Soma-se a isso o atual retrocesso político de uma das eleições mais conservadoras de que se tem notícia (motivadas, principalmente, por orientações religiosas autoritárias, preconceituosas e que se acham no direito de negar direitos básicos a quem não “reze” por suas cartilhas totalmente ultrapassadas). E, como sabemos, a Parada tornou-se muito mais festa, oba-oba, do que ativismo político (concepção original de seus fundadores). Por isso a atitude da jovem Viviany adquire ainda mais significado.

Alguns me disseram que até concordam com tudo isso, mas que foi exagero. Outros que se sentiram ofendidos porque o crucifixo lhes é sagrado. Ora, a mim me parece que se ofender com uma expressão legítima de uma crítica que é necessária e, ao mesmo tempo, ficar cego diante de direitos tolhidos em nome deste mesmo crucifixo, querendo que o mundo se curve a ele prestando-lhe reverencia, isso sim é exagero. Para essas pessoas, fazer uma autocrítica do seu próprio lugar parece estar fora de questão. E é o caminho da intolerância.

A mim me parece igualmente claro que ofensa seria se houvesse o deboche, o escárnio, o vilipêndio. Nisso, estou completamente de acordo. Desafio alguém a mostrar onde isso está senão na cabeça estreita de quem assim enxergou. Afinal, como disse num comentário numa mídia social: criticar radicais islâmicos por explodir o Charlie Hebdo, por causa das charges do profeta Maomé assume ares de comportamento desejável. Ah, isso sim, desenhar o Profeta Maomé é só uma expressão artística. O que esses caras têm na cabeça? Aqueles caras que fizeram isso são radicais, fundamentalistas. Ora, é exatamente a mesma lógica que leva e enxergar o crucifixo estilizado, num momento político, como uma ofensa. Evidencia mais uma variante do tema: a crença (e os símbolos) “do outro” parece importar menos do que as minhas próprias.

Eu gostaria que o fundamentalismo religioso que invade a vida política brasileira, tolhendo direitos das pessoas – e o que é pior, muitas vezes as agredindo física e simbolicamente – tivesse esta mesma percepção. Gostaria também que o deboche, o escárnio e o vilipêndio de símbolos religiosos de religiões como o candomblé e a umbanda (só pra citar dois exemplos), feito por cristãos, não existisse. Uma coisa é desrespeito; outra, bem diferente é crítica política e, mais ainda, a crítica social. Que é o que foi mostrado.

Que alguns cristãos tenham se sentido incomodados e ofendidos, é natural e esperado. Entretanto, mais esperado ainda seria a postura (no meu entendimento verdadeiramente cristã – pelo menos foi isso o que aprendi) da superação desse sentimento imediato de repulsa e raiva (que, reitero, é normal num primeiro momento) e se colocar no lugar do outro para compreender o gesto, não como uma provocação, como uma agressão, mas como uma chamada de atenção para a violência que, muitas vezes, é endossada pela roupagem e o discurso religiosos.

Fico imaginando o que as pessoas que criticaram este gesto fariam diante de uma Maria Madalena ou da “mulher adúltera” que despertaram o mais profundo sentimento de compaixão em Cristo. Aliás, Mel Gibson foi também duramente criticado por retratar bem esse moralismo no filme “A Paixão de Cristo”: as mesmas pessoas que o aplaudiam no domingo de ramos, debochavam e escarneceram dele enquanto carregava a cruz, uma semana depois. O que diríamos nós, hoje, do Godard de “Je vous salue, Marie!”? [Filme, aliás, que vi ser apreendido pela polícia, por determinação da Justiça e acatando um pedido da Igreja Católica, quando ia ser exibido pelo Diretório Central dos Estudantes, na Faculdade de Filosofia da UFMG.]

Seria bom que aqueles que se dizem verdadeiramente religiosos adotassem a postura da compreensão do gesto. Compreender que suas crenças estão, historicamente, endossando uma violência muito maior e mais grave do que aquelas da qual se dizem vítimas. Vou repetir o que um amigo certa vez me disse: os mesmos que expressam temor de caminharmos em direção a Cuba, estão pavimentando uma sólida estrada rumo ao Irã. E com uma velocidade assustadora.

Eu tenho um profundo sentimento de respeito por toda expressão legítima e verdadeira da religiosidade. Respeito como uma característica do ser humano. Entretanto, na mesma proporção, tenho uma aversão enorme a toda expressão de crença que queira se impor às pessoas como sendo a única verdadeira. E o que é pior: ter os seus valores morais guiando a vida civil de quem não tem nada a ver com ela. Isso é um horror que continua a ser praticado nesse nosso mundo pós-Iluminista.

Símbolos religiosos têm que se respeitados; mas isso não significa que não possam ser utilizados como expressões legítimas de críticas a formas de dominação que eles mesmos representam. Afinal, para além da beleza da transcendência e do foro íntimo de cada um, religião é sim território de poder e dominação. E símbolos religiosos usualmente expressam isso com uma veemência contumaz.

Afinal, o que será que aprendemos com pensadores como Voltaire e Diderot?

A caminho do obscurantismo:

PS 1: Na segunda-feira, dia 08/06, foi divulgada a notícia de que os atores Tony Reis e Mariano Mattos Martins, do Teatro Oficina, compareceram à audiência no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. Eles são acusados, juntamente com o diretor José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, de “crime contra o sentimento religioso”. A ação foi movida pelo padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, de Goiás, depois que este assistiu pelo YouTube, na internet, um vídeo com cenas da apresentação da peça Acordes na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2012, durante a greve de alunos, professores e funcionários que protestavam contra a posse da professora Anna Cintra no cargo de reitora, já que esta havia ficado em terceiro lugar na votação feita com a comunidade acadêmica. Felizmente, a Justiça inocentou o diretor e os atores (Conferir aqui a matéria completa no Portal R7.)

PS 2: Nesta segunda-feira, a coluna do filósofo Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo, falava exatamente do recrudescimento da PUC-SP e suas ingerências para impedir a criação da “Cátedra Michel Foucault” alegando que o filósofo rompe com padrões professados pelo catolicismo.

PS 3: Para quem acredita que a comparação com o Charlie Hebdo é um exagero, é bom saber que a jovem Viviany está sendo ameaçada (conferir aqui a notícia). Conheço pessoas que a conhecem e que já me haviam dito isso antes mesmo de ser noticiado pela mídia.

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