Salomé: sedução e morte

Pedro de Santi

O mito bíblico de João Batista e Salomé recebeu um tratamento belo e terrível numa peça de Oscar Wilde (1854-1900), escrita em 1894. Dez anos depois, Richard Strauss (1864-1949) compôs uma ópera moderna sobre a peça. O Teatro municipal de São Paulo traz uma montagem excelente dela, no momento. Grandes cantores, numa interpretação muito exigente vocal e fisicamente.

Salomé, como Elektra- também tema de uma ópera de Strauss- ou Carmen estão entre as representações de mulheres fortes na virada dos século XIX para o XX. Distantes da imagem da mulher passiva que adoece histericamente, como Madame Bovary, elas se afirmam em sua feminilidade desejante e bancam seus destinos trágicos.

Contemporâneo a Wilde e Strauss, Gustav Klimt criou para Salomé (em 1909) uma representação andrógina, sobre a cabeça cortada de João Batista.

A ópera é muito colada no texto da peça, que é curta e se concentra na noite do desfecho da história. Pelo estilo musical, ela é considerada a primeira ópera moderna. Quem não conhece o compositor pode imaginar que ele faça parte da linhagem vienense dos Strauss compositores de valsas, mas não é assim. Além de não ser da mesma família, a música é muito diferente. Se ainda remete ao romantismo de Wagner, ela parece mais próxima de Stravinsky ou Debussy. A música é continua, sem árias de destaque e há extensos e belos trechos orquestrais. A orquestra do teatro municipal, sob a regência de John Neschling, soa intensa,

A história vai acabar em morte. Não se trata de um “spoiler”, mas de uma destino inexorável anunciado, temido e precipitado sem qualquer alternativa ou desvio. A lua é o fundo que rege tudo.

No início, ela é branca: “como uma mulher erguida do túmulo em busca de morte”, dirá uma das personagens. E em pouco tempo ela se tornará rubra. De alguma forma, a tragédia se anuncia.

Da presença da lua, emerge a beleza de Salomé, que atrai irresistivelmente o olhar e o desejo de todos, sobretudo o de seu padrasto, Herodes. Tudo isto anuncia que coisas terríveis estão para acontecer. Salomé é bela como uma flor de narciso balançando ao vento, escreve o autor de “O retrato de Dorian Gray””

O texto reitera: o desejo que corre solto deságua em morte. Em sua primeira fala, Salomé anuncia: “Eu não vou ficar, eu não posso ficar”. Do desejo meio incestuoso do padrasto, deslizamos para a relação fusional com a mãe, mulher de péssima fama, que será tantas vezes acusada por João Batista. E Salomé também venera a lua, que ela presume pura, virgem, intocada pelo desejo masculino. É um elemento feminino transcendente ao mundano. Ela encontrará esta beleza no corpo branco de João Batista, que ela mesma remete à lua, e se perderá no buraco negro de seus olhos.

Salomé ouve a voz de João Batista enquanto olha a lua, fica fascinada por aquele que, dizem, amedronta Herodes. Ela é tomada pelo desejo de vê-lo e falar com ele e exige que seu desejo seja atendido, mas os guardas da prisão em que ele se encontra pedem que ela peça qualquer outra coisa. Ela bate o pé e consegue o que desejava. Isto se repetirá no desfecho.

Ela demanda amor de João Batista, mas não consegue atrair seu desejo; pelo contrário, aderido à sua fé, ele a repudia e a associa à degradação moral da mãe. A fantasia de João Batista está em outro lugar- no messias- e ele tem um bom arsenal defensivo contra o desejo carnal.

Temos então uma atração que remete à própria lua, a rejeição de sua demanda de amor e o fato dele ser temido por Herodes. O quadro está pronto: Salomé está irresistivelmente atraída por este homem inacessível.

O soldado que era apaixonado por ela e cedera ao seu desejo, trazendo João Batista, desespera-se ao perceber que ela está apaixonado e se mata, mas nem assim Salomé se dá conta de sua existência.

O texto de Wilde é fantástico. Salomé tenta seduzir João Batista dizendo ser apaixonada pelo seu corpo; ele a repudia e ela então diz que o corpo dele é horrível, na verdade é por seus olhos que ela está apaixonada; ante novo repúdio, ela então diz odiar seus olhos, amando na realidade sua boca. Novo repúdio e fim do embate, mas ela afirma: “eu vou beijar sua boca, eu vou beijar sua boca”. Pronto. Agora o desejo tomou uma forma definitiva, como um fetiche.

Ela usará seu poder de sedução numa antológica “dança dos sete véus”- na atual montagem de São Paulo, com bailarinas e bailarinos- para o padrasto, para ganhar o direito de pedir o que quer que deseje. A mãe tenta intervir para que sua filha não se ofereça ao desejo de seu marido, mas é em vão. A cena da dança será o centro da ópera, em termos musicais e dramáticos: todo espectador aguarda com grande excitação por este momento.

E então ela pede aquilo que a levará a conseguir beijar a boca de João Batista e se vingar de seu desdém: sua cabeça numa bandeja de prata. Herodes que se deleitara com a dança, fica horrorizado e implora que ela troque o objeto de seu desejo por qualquer outra coisa. Mas Salomé, diferentemente de todos nós, não renúncia, e cobra o cumprimento da promessa. Herodes acaba por ceder ao desejo que considera monstruoso e diz: “Deixem ela ter o que pediu. De verdade, ela é uma filha de sua mãe”. Sua mãe, aliás, é a única que legitima o desejo de Salomé, encontrando também um desejo seu realizado na vingança contra João Batista. O desejo da mãe o da filha se encontram. Enquanto os soldados vão cumprir a ordem, Salomé fica à espera de alguma manifestação de dor ou medo de João Batista, mas ele a frustra novamente.

Ao receber a cabeça dele num bandeja, ela beija os seus lábios e se gaba de ter conseguido, afinal, realizar seu desejo. Mas então o sentimento amoroso e o ressentimento pela rejeição voltam: ela diz

que ele a seduziu e tirou sua virgindade, acendendo nela um fogo. Embora Salomé esteja na linha de frente da ação, ela não a controla; ela parece enlouquecida nesta cena. O beijo tem um gosto amargo e ela se pergunta se seria o sabor do sangue ou do amor. O poder do amor é maior e mais misterioso que o da morte, diz, mas ela só sabe do segundo.

A luz da lua pousa sobre Salomé e Herodes, ainda horrorizado, ordena que seus soldados a matem. Eles se lançam sobre ela e a matam sob seus escudos.

Ante o desejo masculino, em geral, Salomé era um objeto ativo que seduzia e manipulava, fazia dos homens o que bem entendia e os tornava fracos. Ela operava sobre os homens a castração simbólica que despertava e deixava sempre frustrados seus desejos. Ante a falha dos recursos de sedução e a rejeição de João Batista, recursos mais primitivos foram mobilizados e o simbólico regrediu ao real, da castração simbólica à mutilação: a decapitação. Mas a potência do feminino acaba por se impor de toda a maneira.

Moral da história, o desejo que corre sem limite desemboca em gozo e morte. Mas em Salomé, a morte não é encontro romântico, embora coincida com a realização do desejo (beijar João Batista). Não há encontro, mas mutilação e submissão mortífera do objeto de desejo, reduzido a um beijo sem reciprocidade. Algo como a violência de um estupro. Talvez o quadro de Klimt capte esta dimensão.

Para inibir a potência masculina, usa-se a castração (simbólica, por favor); para a feminina, a avalanche de escudos que, afinal, conseguirá no máximo reprimi-la.

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