Quem banca o padrão de vida na Suíça

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Uma das vertentes mais interessantes das ciências humanas nas últimas décadas tem sido o revisionismo da História. Uma quantidade enorme de teses, livros e reportagens não param de lançar luzes sobre versões oficiais e fatos ocultados. A edição de 28.09.14 do Estadão traz excelente matéria assinada por Jamil Chade sobre a participação da Suíça no negócio da escravidão. Destaca, entre outras, a bela e pacata Neuchâtel, a qual abriga um conjunto arquitetôn ico de palácios, museus, bibliotecas e repartições públicas construído com fortunas de banqueiros e empresários que enriqueceram com o tráfico de escravos.

Calcula-se que entre 1773 e 1830 bancos suíços financiaram o tráfico de aproximadamente 175 mil escravos. Embora na época fosse um negócio legal, a partir de 1850, o comércio de escravos foi proibido. Mas o governo e as escolas suíças, em 2014, procuram não tocar nessa ferida e não gostam de admitir que o comércio de seres humanos esteve na origem de várias das maiores fortunas do país e ajudaram a alicerçar o padrão de vida de que hoje gozam os suíços.

Há, no entanto, um capítulo mais negro e atual da Suíça. Sabemos que o que sustenta o padrão de vida do país é sua rede de bancos, a qual abriga as fortunas de políticos corruptos all around the world, dos maiores ditadores e genocidas, e os lucros provenientes de negócios escusos de empresas dos mais diversos setores espalhadas pelos dois hemisférios. Mais: a Suíça produz tecnologia de ponta, usada, entre outras, na indústria de armamento, exatamente como faz a Áustria. Mas por que se produzem armamentos se as fronteiras das três Américas sofreram mudanças mínimas nos dois últimos séculos; se a África, depois da partilha entre os países ricos europeus, no final do século XIX, quase não teve alterações geopolíticas; se a Ásia, depois da independência dos países da Indochina também não teve nenhuma alteração significativa e a Europa, tirante os conflitos da Bósnia e do Kosovo, há 50 anos quase não mudou suas fronteiras?

É que a guerra é sempre um grande negócio. E então países como Suíça, Áustria e Bélgica ostentam sua neutralidade e sediam organizações humanitárias, enquanto faturam com conflitos inventados nos quintais dos países pobres. Bagunçando um pouco mais o coreto dos países-contos-de-fada europeus, podemos lembrar também o Luxemburgo e Liechtenstein, cheios de castelos de nobres cujas fortunas são sempre discutíveis, como a da ex-família imperial do Brasil, que fez fortuna, entre outros negócios, com a exploração de cortiços no Rio de Janeiro. Mais ao norte está a gélida Islândia, cujo altíssimo padrão de vida foi seriamente abalado em 2008 quando explodiu a farsa do seu sistema bancário.

O romance O SONHO DO CELTA, de Mario Vargas Llosa, e o ensaio O FANTASMA DO REI LEOPOLDO, de Adam Hochschild, denunciam o esquema que transformou o Rei Leopoldo II da Bélgica num dos homens mais poderosos do mundo. E o filme REBELLE, de Kim Nguyen (sem edição no Brasil) mostra a crueldade com que as crianças são cooptadas para as guerrilhas na África.

Com tantas denúncias, publicações e matérias jornalísticas sobre como a Europa continua a agir em relação ao Hemisfério Sul, não são poucos os intelectuais, artistas e formadores de opinião que insistem em tapar o sol com a peneira. O júri da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2013 protagonizou um vexame histórico ao conceder o prêmio de melhor documentário ao filme PLANO PARA A PAZ, de Carlos Aguilló e Mandy Jacobson. O documentário mostra a luta contra o apartheid e a participação direta de um empresário francês para derrubar o regime. Só não mostra os negócios (envolvendo a indústria de armamento) que a França passou a realizar com a África do Sul após a queda do regime. Das duas uma: ou o júri mordeu a isca da propaganda que o filme realiza ou não entende nada de história da África.

Como se vê, por trás dos cartões postais da Suíça, da tranquilidade dos alpes austríacos, dos castelos do Luxemburgo e das ações humanitárias da sempre tão bem intencionada França, há mais coisas do que sonha a nossa vã filosofia.

Em tempo: chegou esta semana às livrarias brasileiras o derradeiro romance de José Saramago, o qual é composto por apenas três capítulos, já que a morte do escritor veio interromper a conclusão. O romance é uma crítica à indústria de armamentos e chama-se ALABARDAS, ALABARDAS, ESPINGARDAS, ESPINGARDAS.

Para ler outros textos do Professor Veronese, acesse blog do CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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