Prelúdio para o entardecer de um casal

Por Pedro de Santi

O filme “Antes da meia noite”, de 2013 tem direção e roteiro de Richard Linklater e, como protagonistas Jesse (interpretado por Ethan Hawke) e Celine (interpretada por Julie Delpy). Ele compõe uma trilogia tocante. Em 1995, foi produzido “Antes do amanhecer” e, em 2004, “Antes do pôr do sol”.

O intervalo de nove anos entre as produções é materializado nas tramas. No primeiro encontro, eles tinham cerca de 23 anos; no atual, 41. É uma oportunidade única podermos acompanhar o amadurecimento das personagens e o destino do casal. A despeito de serem dois atores bonitos, a marca da passagem do tempo se impõe. Há um brilho de olhar e sorriso que simplesmente vão se apagando. Os três filmes são feitos de longos diálogos, pouca trilha sonora. Alguns momentos chegam a ser cansativos, e evocam no expectador a experiência de casal: o encontro, a intimidade, o desgaste, o cansaço.

O estabelecimento dos cortes cronológicos entre os filmes produz um efeito estranho. Momentos importantes foram vividos nos intervalos entre eles e só temos indícios do que aconteceu. Por exemplo: o segundo filme acaba com a promessa de que eles começarão um relacionamento, afinal. O terceiro já os mostra casados. Nada sabemos sobre o a separação de Jesse, sobre o casamento deles ou o nascimento das gêmeas. Somos levados a fazer deduções a partir de indícios do filme.

No filme atual, eles estão passando férias na Grécia e, na primeira cena, Jesse está num aeroporto, acompanhando seu filho adolescente (de um casamento anterior) até a sala de embarque. O menino parece indiferente às preocupações do pai e suas tentativas de estabelecer contato. O pai está sofrendo com a separação, o filho não parece estar. Só no momento final ele parece dar ao pai o que ele quer receber: um grande abraço e a declaração de que foram as melhores férias de sua vida. Este é um dos pontos mais dolorosos da história entre o segundo e terceiro filme. O casal vive na França e o filho mora com a mãe. Ao longo do filme, ele expressa seu ressentimento de morar longe do filho. E aqui aparece um dos dramas transversais ao longo dos filmes. No segundo, ele ainda estava casado com a mãe do filho e, apaixonado por Julie. Antevendo a separação, comenta o quanto seria terrível pensar em viver longe dele.

A reação de Celine é extremamente agressiva quando pressente que Jesse pode estar querendo mudar com a família para os Estados Unidos. Há grandes explosões de ressentimento: cada um culpa o outro por ter aberto mão de coisas essenciais para si, cada um sente que cedeu mais para que o casal sobrevivesse. O clima de boa parte do filme é pesado e, aparentemente, sob o risco de que o casal se desfaça.

Vai se desenhando o movimento contínuo das negociações e concessões intrínsecas à vida de casal. Se cada um pudesse antever até onde teria que ceder para manter o relacionamento, talvez ele sequer começasse. Dramaticamente, ela chega a perguntar: se hoje ele a conhecesse num trem, como há 18 anos, ele a abordaria e convidaria para descer com ele, como então?  Ele diz que sim, é claro, mas não soa convincente.

Noutro corte transversal, é interessante ver como a temporalidade do casal estabelece graus distintos de vínculo e interação entre o casal e outras pessoas. No primeiro filme, em clima de encontro, eles vagueiam por Viena e, eventualmente, falam com pessoas com quem se deparam. É um tempo de encontro e disponibilidade. No segundo filme, o reencontro em Paris produz um desejo potente de estarem juntos, de modo que eles não falam com ninguém e o filme acaba com ele deixando-se perder o avião para permanecer com ela. É um tempo de grande intensidade e decisão; é preciso agir e consolidar o encontro. No terceiro, há menos tempo partilhado em casal. Há uma extensa cena numa mesa de almoço com muitos amigos, além das passagens em que estão com as filhas. É um tempo poroso, com vazios, tangências e momentos de reencontro. No almoço, eles trocam indiretas e provocações. Todos os retratos de desgaste da vida cotidiana em comum ganham contrapartida com a fala de uma mulher viúva, que luta para preservar a memória do marido, com saudades.

Não se trata de uma narrativa simplória: não parece haver alívio quer no encontro, quer na solidão. Os cenários gregos evocam um passado em ruinas que se perde aos poucos.

O momento que se apresenta como a possibilidade de estarem a sós dispara o resgate das pendências e ruídos acumulados ao longo do tempo. A cena é conhecida por muitos casais com filhos. Os amigos oferecem ao casal a oportunidade de terem uma noite sozinhos, sem as filhas. A situação se torna forçada: é como se eles fossem obrigados a se divertir e transar. Mas o que está no atraso- à espera por uma oportunidade para emergir- e se impõe é a mágoa, antes que o desejo. A saudade que cada um sente de si é maior que do aquela que sente do casal. O companheiro amoroso é agora confundido com o peso do cotidiano e da rotina. Jesse tenta, ainda que artificialmente, manter um ambiente de proximidade; Celine não alivia e o confronta sem parar. É exaustivo.

A consciência das perdas advindas da temporalidade é transformada em raiva e toma como objeto aquele que está mais próximo, o cônjuge. É como se o outro fosse o culpado por tudo, inclusive pela passagem do tempo. Reservamos nosso pior e nosso melhor para aqueles que amamos.

A beleza e romantismo dos dois primeiros filmes são trocados pela dureza da vida. E, contra todas as expectativas, o vínculo amoroso acaba por ser resgatado pelo casal. Ou o roteirista resolveu não nos deixar sair do cinema arrasados? Os dois primeiros filmes são românticos e terminam em aberto. O terceiro é mais realista e duro, mas oferece ao final o reasseguramento e conforto de que o vínculo amoroso, afinal, é forte e pode sobreviver na vida real, já transfigurado e distante do momento apaixonante e fortuito quando se encontraram num trem.

Torço para que, em nove anos, mais um filme seja produzido (e, quem sabe, assim sucessivamente por mais algumas rodadas). Como estarão as personagens aos 50 anos, juntos ou separados? Mais ou menos felizes? Mais ou menos em paz consigo? Em qual bela cidade se passará o filme? Como poderá se chamar o quarto filme: Antes que seja tarde?

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