Por que a guerra?

Pedro de Santi

“Apanhados no torvelinho desse tempo de guerra, informados de maneira unilateral, sem distanciamento das grandes mudanças que já ocorreram ou estão para ocorrer e sem noção do futuro que se configura, ficamos nós mesmos perdidos quanto ao significado das impressões que se abalam sobre nós e quanto ao valor dos julgamentos que formamos”.

Assim começa o texto “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, de Freud. Escrito em 1915, em plena guerra mundial, quando sua família passou por dificuldades materiais e teve filhos em combate. Neste último mês, os conflitos em Gaza, Croácia e Líbia me fizeram lembrar deste texto e tentar entender uma vez mais o horror da guerra, com a perda de vidas contada em milhares. Compartilho a percepção de estar perdido e insuficientemente informado sobre a história, contexto e realidade do que está acontecendo. Mas compartilho também o repúdio cada vez maior às mortes que se multiplicam.

No caso de Gaza, o conflito não começou há um mês, e tampouco na formação de Estado de Israel após a segunda guerra. O início se perde no tempo, mas a cada dia se reedita o “foi o outro que começou e estou me defendendo”. Hoje mesmo, dia 2 de julho de 2014, um cessar fogo humanitário de apenas 4 horas não foi respeitado e cada lado afirma que a ruptura do pacto foi do outro. Há uma poderosa guerra de informação.

O que parece certo é que, se podem haver tréguas esporádicas, o conflito não parece ter fim. A cada morte, novas gerações terão realimentado o ódio entre as partes. Como sair da cilada?

Um lado diz: eu lhe odeio tanto que, para que você não exista, estou disposto a sacrificar minha própria existência. O outro responde: eu me amo tanto que, para defender minha existência, estou disposto a sacrificar a sua; e chamarei de anti-semita àqueles que repudiarem a morte de civis palestinos.

A violência se sustenta sobre juízos absolutos, mas há nuanças a serem evidenciadas. Até onde entendo, não há identidade absoluta entre o Estado de Israel e o judaísmo: repudiar uma ação criminosa do primeiro não implica em perseguir ou deixar de admirar a cultura do segundo. Da mesmo maneira, não há identidade entre os habitantes da faixa de Gaza e aqueles que cavam túneis sob o território de Israel para praticar terrorismo e devem ser detidos.

Parece absolutamente distante o que seria inevitável acontecer para que o horror cesse: negociação. A humana e imperfeita negociação entre as partes.

Mas lá, como na Croácia e na Líbia, parece que as forças em disputa não aceitam intermediação ou não temem as instituições internacionais de mediação, de modo que a força simplesmente se impõe. O fim só adviria da aniquilação da outra parte.

Voltando ao texto de Freud, ele diz que além das terríveis perdas de vidas, a guerra ainda destrói crenças que criamos com relação à civilização e amadurecimento dos homens. Mesmo numa situação inevitável de confronto, queremos crer que certa civilidade deveria ser mantida:

“Naturalmente, haveria todo respeito com a parcela não combatente da população, com as mulheres que permanecem afastadas das ações da guerra, e com as crianças, que quando crescidas devem tornar-se amigos e colaboradores de ambos os lados. E também se manteriam todos os empreendimentos e instituições internacionais em que a comunidade civilizada do tempo de paz se havia encarnado”.

Talvez parte de nosso horror ante está guerra venha de uma idealização. A de que os Homens, em geral, são progressivamente civilizados e a de que o povo de Israel, em particular, tendo seu Estado formado justamente após o holocausto, seria privilegiadamente sensível à idéia de que seja legítimo aniquilar uma população em nome da auto-defesa. Num certo sentido, este era o argumento nazista: aniquilar o judeu compreendido como ameaçador à integridade da raça ariana.

Cada pessoa solidária ao sofrimento dos judeus na segunda guerra e simpática à existência do Estado de Israel vê com desconcerto a violência imposta pela desigualdade de poder bélico e a idéia de que as mortes civis são consideradas apenas uma contingência inevitável. Mais do que isto, percebemos que o argumento segundo o qual os ataques são revides a ataques sofridos não escondem o quanto, de fato, ter sofrido um ataque justifica e libera a expressão do próprio ódio e crueldade.

Em 1932, Freud voltou à questão em “Por que a guerra?”, texto em resposta a uma carta de Einstein. Nele, Freud admite a guerra e a morte como integrantes à vida e evoca uma idéia presente no atual conflito:

“Não se podem condenar igualmente todas as espécies de guerras; enquanto houver nações e reinos que estejam dispostos à destruição implacável de outros, esses outros têm que se armar para a guerra”.

Como em tantos outro casos, Freud inverte a questão: sendo como somos, movidos pelo interesse próprio, cheios de ódio e atemorizados pelo outro, a questão verdadeira seria compreender como chegamos a não estar constantemente em guerra.

Voltando a “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, encerro com uma última citação:

“Na realidade eles não desceram tão baixo como receávamos, porque não tinham se elevado tanto como acreditávamos”.

‘Eles’, entenda-se, somos todos nós.

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