Ponto zero; a ruptura na adolescência

Pedro de Santi

O filme acaba de ser lançado no circuito de filmes de arte. Ponto Zero é, em primeiro lugar, um filme muito bem feito. Direção, atuações, ambiente criado pela música, tudo funciona muito bem e cria um ambiente acolhedor.

O diretor e roteirista José Pedro Goulart, realiza seu primeiro longa, mas vem de uma grande experiência em publicidade e curta-metragens. Segundo ele, trata-se de um filme preparado por anos sobre a travessia angustiante da adolescência. Neste sentido, uma série de elementos deste ritual de passagem são trabalhados, sobretudo a sequência que demarca o “ponto zero” que nomeia o filme e em torno do qual a narrativa se organiza.

O expectador se mantém ligado ao filme, intrigado com a trama original. O diretor diz que filmou as cenas em sequência, sem que os próprios atores soubessem o que vinha adiante: isto deve ter se transmitido para as atuações, bastante convincentes.

Mesmo com a sensação de estar bem acolhido neste ambiente, o filme é duro e mostra uma situação de desamparo dos membros de uma família. Cada um se vê só e, ao invés de o filho adolescente poder buscar algum suporte nos pais, ele se vê bombardeado por suas demandas, convocado a ocupar o lugar de adulto aos 14 anos. Ele está no fogo cruzado entre um casal desagregado.

Um pai ausente acusa a mãe de querer manter todos grudados; na realidade, ele tem sua vida à parte em torno do trabalho. Ela, por sua vez, parece desesperada pelo afastamento do marido e cobra do filho que o acompanhe e, eventualmente, o substitua. Ela representa o papel da mulher que perde seu papel como esposa e está prestes a perder o de mãe que habita a tantos anos, com o crescimento dos filhos: ela se debate ante o abismo da perda de identidade. O diretor conta que, durante os eventos de lançamento do filme, muitas mães têm vindo falar com ele sobre a personagem, na qual reconhecem seu próprio drama. Embora o protagonista seja o jovem Enio, a personagem da mãe é o centro do nó familiar.

Passamos pela cena clássica da adolescência na qual o filho põe a mãe para fora do quarto, em busca de privacidade. Mas, nesta história singular, aquela cena já acontecia na infância, quando o menino preferia estar a só com seus medos internos a estar na presença da mãe, invasiva.

E é neste “tom a mais” que se abrem possibilidades diferentes de interpretação. Num debate com o diretor do filme para o Canal da Casa do Saber no YouTube (Debate sobre o filme “Ponto Zero” | Zé Pedro Goulart e Pedro de Santi), o diretor disse considerar estar narrando uma travessia da adolescência, com uma resolução; enquanto me pareceu que ele estava descrevendo um colapso mais profundo e sem solução, evocando um surto psicótico. O menino parece ceder frente ao excesso de demandas e da culpa por não poder dar conta delas.

Em meio ao filme, há uma ruptura. A direção é delicada ao mostrar o menino em busca do pai e daquilo que o representa. Então, entramos num ambiente onde se perde a referência de realidade. Lembrei-me muito da ópera “L’enfant et les sortilèges”, de Ravel (1925) ou do filme “De olhos bem fechados”, de Kubrick (1999). Entramos em numa viagem onírica e ficamos sem saber se o que estamos assistindo é ou não realidade.

E os motores desta viagem são o desejo e a culpa. Desejo despertado por um prostituta que ao mesmo tempo remete à figura da mãe e a ela se opõe: ao invés de presença invasiva, sedução por uma figura poética e inalcançável.

E a culpa acaba por gerar um crime. Impotente para responder de alguma forma ao que se apresenta, o menino tem um novo encontro com o desamparo.

Desta noite louca, o menino emerge como alguém que sai da posição de estar à mercê da histórias dos adultos e passa a propor as suas.

Numa via interpretativa, ele teria se desligado de vez da própria realidade; em outra, mais de acordo com a intenção do roteirista, ele teria feito a travessia da adolescência, mas deixando esqueletos irresolutos para trás. Quem não os tem?

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