Politicamente correto; policiamento incorreto

Pedro de Santi

“No meio de uma região arborizada e biologicamente preservada, havia um pequeno e humilde chalé, onde morava uma pequena e humilde família. O pai, que para sobreviver num mundo neoliberalista selvagem via-se obrigado pelas forças do sistema a desemprenhar a função de açougueiro de árvores, fazia o melhor que podia para criar seus dois filhos impúberes chamados João e Maria”

Assim começa um capítulo do livro “Mais contos de fada politicamente corretos” (James Finn Garner. São Paulo: Ediouro, 1995).

A expressão ‘politicamente correto’ deveria nomear algo extremamente precioso e desejável: ações corretas na direção da convivência coletiva na “polis”. O politicamente correto poderia ser, por exemplo, o oposto do extremo individualismo narcisista, imediatista e predador.

Mas, ao longo do tempo, ‘politicamente correto’ passou a denotar policiamento da expressão. Sua instituição pretendia evitar a violência contra grupos minoritários por parte dos dominantes. Seu intuito de base é legítimo: preservar os direitos de todos.

Mas, a título de resguardar direitos de entidades identitárias (indivíduos ou categorias de gênero, raça, idade, partido, regionalismo, nacionalidade, condições específicas de saúde, etc), chegou-se ao extremo do cerceamento de ideias. No limite, cada um se sente no direito de não ser ofendido e de monitorar menções a si ou aos seus ou àquilo sobre o que sustenta sua identidade. Pessoas ou grupos que se sentem ofendidos ou oprimidos identificam-se com seus agressores e passam a operar um policiamento ostensivo e opressor, passando a fazer rigorosamente aquilo que reclamavam ter sofrido. Eternizam-se os mecanismos de inclusão e exclusão.

Vivemos um momento de fortes afirmações identitárias. E cada afirmação legítima cria território e fronteiras.

Bem, a nossa simples existência e expressão ocupa espaço e, assim, entra no espaço do outro; e vice-versa. Neste sentido, há uma violência intrínseca e não necessariamente intencional em cada gesto que modifica o ambiente; de modo que, no limite, a intenção de preservar a integridade de alguém só seria possível ao torná-lo blindado autisticamente contra o contato com o outro. Uma entidade alérgica ao outro só poderia ser respeitada em sua hiper-sensibilidade com a assepsia do isolamento. O ‘politicamente correto’ se resolveria no avesso do convívio político, paradoxalmente. Mônadas que evitam o conflito implicado em todo convívio.

A ideia de que nossa liberdade acaba onde começa a do outro presume que tenhamos existências autônomas, sem sobreposições, compromissos e implicações com os outros, mas não é assim. Nosso eu não se encerra em nossas fronteiras corporais, ele só existe na rede de nossas relações intersubjetivas. Não há limite claro entre eu e o outro.

Isto é muito expandido, é claro, por conta do apagamento das barreiras entre ambientes públicos e privados proporcionado pelas mídias sociais. Hoje, tudo pode ser registrado e postado em rede. Ainda que se possa imaginar que o será num oceano de informações e dificilmente chamará a atenção, o fato é que está registrado e, com isto, acessível e eternizado. Muita gente ainda não se deu conta do grau de responsabilidade que se precisa ter neste novo ambiente.

A privacidade foi um dos marcos da subjetividade moderna e nasceu num mundo no qual a crença em Deus diminuía: não pode haver privacidade de fato se há um Deus onisciente. Com a queda da crença, nasceu um espaço de solidão e privacidade inéditos e a preocupação passou ser a não ser flagrado pela “polícia”, pelo olhar social. Hoje, temos esta nova figura do “Deus está vendo”: nossa compulsiva exposição em mídias sociais.

Um post em nosso perfil pessoal incide sobre nossa vida familiar e profissional imediatamente. Os mecanismos de distinção e privacidade são toscos e facilmente burlados: o princípio da rede é tudo compartilhar. Adeus privacidade; o auto-policiamento constante se impõe, pois responderemos por algo que, uma vez postado, fugirá de nosso controle.

Juntamente à dimensão do convívio, esta a do uso da linguagem. Estive há algum tempo numa banca de doutorado onde um dos membros reclamou a sério do uso do termo ‘denegrir’, no texto da tese. O termo, ele nos instruiu, remetia a ‘tornar negro’ num sentido negativo. Comentei então à mesa que, pelo raciocínio, o termo ‘judiar’, também presente no texto, deveria ser igualmente expurgado, por ser também pejorativo ao termo ‘judeu’. De minha parte, era uma brincadeira (nestes contextos, é sempre preciso avisar quando de trata de brincadeira), mas não caiu bem: o politicamente correto não tem um pingo de senso de humor.

Levado ao extremo, o intuito do nosso ‘politicamente correto’ seria uma linguagem unívoca, sem ironia, à prova de ofensa, incapaz de ferir qualquer um. Ou seja, algo como a “novilíngua” do livro “1984”, de George Orwell: periodicamente uma nova versão do dicionário é lançada, com cada vez menos verbetes, tendendo a que só haja uma palavra para cada coisa, sem efeitos polissêmicos, interpretações ou mal entendidos. Procedimento que só faz sentido num ambiente autoritário.

O humor, a ironia, o duplo-sentido; tudo isto tende ao politicamente incorreto, por sua irreverência característica e por seu movimento de descolamento daquilo que seja imediato. Trata-se da própria natureza da linguagem: criar sentidos, transcender o imediato. A assepsia da linguagem nos privaria de Shakespeare, Guimarães Rosa e, sobretudo, de toda a poesia e humor.

Então não deve haver limite? Para termos o direito de nos expressarmos precisaremos aguentar toda expressão que nos desagrade e ofenda o que nos seja mais caro? As fronteiras serão sempre móveis e serão negociadas caso a caso. hoje, com a predominância do policiamento, parece ser o caso de fazer o papel de advogado do diabo e estar mais ao lado da liberdade de expressão.

É preciso ser responsável e responder pelo que se diz e escreve, e penso que é preciso não se render ao medo e a atitudes só defensivas. Nada de criativo ou significativo pode ser engendrado quando se quer agradar todo mundo e não se quer desagradar ninguém.

Com o uso atual do ‘politicamente correto’, conflitos não são resolvidos, apenas não são enfrentados.

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