Poder e paranoia; afinidades perigosas

Pedro de Santi

Vivemos um momento de conflitos intensos entre forças democráticas- que defendem a convivência da diversidade, em suas inúmeras dimensões- e forças conservadoras, nos campos político, moral e religioso. Recentemente, as últimas conseguiram trazer de volta o que parecia improvável: o imaginário nazista ao cenário político alemão.

Parece oportuno, neste contexto, retomar algumas reflexões sobre certas dimensões psicológicas mobilizadas naqueles que ocupam posições de poder.

Como um ótimo exemplo, nos últimos capítulos de Massa e poder (Masse et puissance. Paris, Gallimard, 1966 [1960]), o ensaísta búlgaro Elias Canetti (1905-1994) estudou a presença da paranóia na ideologia nacional-socialista. Curiosamente, ele relaciona à autobiografia de Hitler: Mein Kampf (Minha luta) com a obra Memórias de um doente dos nervos de Daniel Paul Schreber. O livro foi publicado em 1907 e, tendo chegado às mãos de Freud, foi a base de seu conhecido “Caso Shreber”, de 1910.

Segundo Canetti, Hitler e Schreber sofreriam de uma doença do poder: uma vontade patológica de sobrevivência exclusiva e o impulso de sacrificar o resto do mundo em função desta sobrevivência.

Canetti observa que na paranóia se trata sempre de se defender e reassegurar de uma situação exaltada. O mesmo ocorre com o soberano, pela própria natureza do poder: se ele pode, cerca-se de soldados e se fecha em cidadelas. A percepção de complôs e conspirações também são partes essenciais que a paranóia compartilha com o poder. Ambos sentem-se cercados por um inimigo que não atacará só, mas mobilizará um bando odioso. Os membros deste bando se disfarçam, mas a força intelectual do paranóico os descobre. Uma das tarefas essenciais do paranóico é desmascarar aqueles que o perseguem, daí sua “mania da causalidade”.

Embora Canetti não cite a “Psicologia de grupos e análise do eu” (1921), ele prossegue estabelecendo paralelos em tudo associados à obra de Freud. O delírio de Schreber teria todos os elementos que constituem a dinâmica da massa. Partindo paradoxalmente do princípio de que todo indivíduo possuiria uma fobia ao contato e ao estranho, Canetti observa que a situação de massa é atraente, pois dilui o medo, despersonaliza o eu e o outro numa atração forte e sustentada. A massa possuiria uma mentalidade equivocada; uma capacidade de mobilização de cada um, que nela é reduzido ao todo; uma grandeza que deve ser continuamente renovada e o sentimento de iminência de uma catástrofe, que destruiria a ordem do mundo.

Daí deriva a fantasia de Schreber de se tornar o único homem a sobreviver:

“Ele quer ser o único a permanecer vivo sobre um gigantesco campo de cadáveres, e este campo de cadáveres contem todos os homens. Nisto, ele não se mostra apenas paranóico: permanecer o único vivo é a tendência mais profunda de todo soberano ‘ideal’.” (Canetti, p. 470)

Foi em 1910, em dois textos- um deles, o “Caso Shreber”, que surgiu o conceito de narcisismo. E as idéias envolvidas na relação com o poder e com a massa que temos descrito são fortemente narcísicas, com a intolerância que lhe é característica. O soberano manda a massa em direção à morte para que ele se desvie dela. Por fim, a conclusão de Canetti é a de que a paranóia é literalmente uma doença do poder.

A um ano de nossas próximas eleições para governador e presidente, precisamos lembrar de tudo o que se pode aprender com as experiências que tivemos com formas de poder totalitário e, mesmo, estar atentos para os efeitos que a investidura em posições de poder podem exercer sobre qualquer um. O aprendizado com a experiência, a memória e a cultura podem ser nossos únicos remédios contra a repetição.

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