Pedro de Santi
SERVIÇO: O melhor lugar do mundo. Evento que reune os trabalhos de professores e alunos da ESPM nos Painéis FLIP, Bienal de Artes e Eu/outro na cidade. De 8 a 11 de setembro na ESPM. Confira a programação em http://www.espm.br/omelhorlugardomundo.
“As ruas de São Paulo transformaram-se em minhas veias e artérias. As praças de São Paulo instalaram-se nas ramificações do meu fígado, do meu estômago e do meu coração”. Paulicéia dilacerada, p.5.
A “Pauliceia dilacerada” de Mário Chamie é um monólogo dialogado com Mário de Andrade. A identificação começa pelo nome que o fez criar o chiste: “há Mários que vem para bem, e eu que sou dos Mários, o menor”. Mas não se restringe a isto. Mário de Andrade seria um autor seminal, vivo em todos os grande nomes da literatura nacional posterior.
E ainda além, ambos foram Secretários da Cultura da cidade de São Paulo, sob administrações automovelcêntricas. Chamie coloca-se então na posição poética ousada de escrever as memórias póstumas de Mário de Andrade.
O dilaceramento da cidade foi o fruto das escolhas de política urbana de três prefeitos dos anos 30 aos 40, responsáveis também pela demissão de Mário de Andrade da secretaria municipal da cultura que, como disse acreditar em depoimento póstumo a Máior Hacime (heterónimo de Chamie), levou-o à morte.
A opção pelo carro quando todas as grandes cidades do mundo investiam no transporte subterrâneo funciona como diagnóstico e metáfora da interrupção da vida vibrante da cidade:
“Esta São Paulo das primeiras quatro décadas do século 20 deveria ter parado aí. Deveria ter parado aí, para absorver as tecnologias de seu crescimento sustentável, pois, nos anos 30 e 40, o metrô se oferecia como uma das vitais soluções. Não só se oferecia, mas clamava por ser a base da sustentabilidade de uma nossa maturação urbana mais limpa, mais racional, mais aprazível (…) A descompassada vesguice de tais prefeitos não se deu a chance de desconfiar que a raiz das árvores frondosas está debaixo da terra, assim como os suportes tetônicos do florescimento das grandes cidades está nas linhas subterrâneas do seu transporte coletivo. E a vesguice, assim autofágica, não se faz de rogada quando acelera o motor de sua arrogância irremovível. Aqueles prefeitos não removeram nem revolveram a terra por baixo; preferiram terraplenar os chãos ondulados do planalto, em glória e culto aos desmatamentos, ao asfalto compacto de superfície e ao acúmulo estrangulado dos automóveis. Prepararam o terreno para a depredação triunfalista de um crescimento voraz, tanto em sentido de devastação horizontal quanto em sentido de verticalização megalô.” (p. 59/60)
A Paulicéia dilacerada de Chamie conta a deterioração da cidade, operada pela opção pelas pistas de automóveis a obturar e impermeabilizar o solo canalizando seus córregos e rios, rasgar quadras, tornar perigosas as áreas de convívio.
A mesma destruição de um projeto de cidadania e urbanismo vale para a burocratização do uso da Biblioteca que leva o nome de Mário de Andrade, mais apta a distanciar o leitor do que a convidá-lo. O contraposto deste distanciamento foi dado pelo próprio Mário Chamie quando, ocupando o mesmo cargo que o Mário anterior, criou ao lado do metrô Vergueiro o Centro Cultural São Paulo, como espaço acessível, aberto, acolhedor e produtivo.
Assim, no livro de 2009, Chamie evoca ações políticas do final dos anos 70, abrigando as nossas mais atuais inquietações sobre mobilidade urbana e ocupação das ruas como espaços políticos e de convivência.
Mudando de registro. Tive contato com Chamie bem antes de conhecê-lo pessoalmente. Fui um dos milhares de adolescentes que desfrutaram desde o início o Centro Cultural São Paulo, no início dos anos 80. Lá frequentei a biblioteca, emprestei partituras e assisti a inúmeros shows da música independente paulistana no Teatro de Arena. Desfrutei do trabalho de Chamie, assim, muito antes de conhecê-lo, em sua concepção e práxis de política e cidadania.
Mais de dez anos depois, eu o conheci como colega (que honra!) professor na ESPM. Intimidado, só chegava perto das rodas em que ele estava para ouvir os inúmeros casos deliciosos e colher a fraseologia característica (como: “Toda ejaculação é precoce” ou a impagável: “Ou o sujeito presta, ou é um sistemático”).
Com os anos (décadas), fui me aproximando até que, por fim, tive a coragem de convidá-lo a participar de um sarau para assistir filmes, jantar e prosear entre alguns outros amigos professores. Pressentia, para além da minha admiração, a solidão dele, sobretudo após a morte de sua Emilie. Durante seus últimos anos, tive a oportunidade de com ele e outros amigos compartilharmos nossas solidões.
Solidão sentida e ressentida ao final do lançamento de “Paulicéia Dilacerada”, em 2009, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Depois dele passar horas autografando como poeta célebre e assediado, encontrei-o sozinho. Café no Santo Grão e uma carona fecharam a noite pela nossa São Paulo.
De nossa solidão, retomo à cidade demitida e ao poeta dilacerado, ou o contrário:
“Me demitiram. Me demitiram de mim, demitindo a cidade de si mesma. Sou aqui o bumerangue da redundância e digo e redigo: a demissão é o golpe que racha e fragiliza todas as minhas espertezas, e me remete ao estado cabisbaixo em que agora, póstumo, vou me evitando no encontro que quero ter comigo mesmo. Acentue-se, a demissão foi um golpe de virulência única, desferido por ação e graça de Prestes Maia, arrogante e subserviente ao mando de fora; pela fraqueza cúmplice de Abraão Ribeiro, amestrada lesma adormecida; e por endossos posteriores de Faria Lima, com sua tardia e nociva lucidez. Todos eles, um antes, o outro durante, e o último depois, coagularam o meu sangue e entupiram minhas coronárias. Enfartaram-me.(…)
Deixando de implementar a rede subterrânea de nosso transporte coletivo, o trio impediu que os cidadãos de Piratininga trafegassem por baixo, sem atropelo, e ganhassem, por cima, a liberdade civilizada das calçadas.
Perdida esta liberdade, a nossa gente, esfalfada no asfalto, tornou-se vítima da locomoção arrastada e penosa, que a embolia pulmonar das artérias e ruas da Paulistânia provoca. Uma locomoção que entorpece os músculos de nossas pernas e padroniza os esgares de nosso rosto anônimo. Rosto, aliás, mais que anônimo: rosto insone; e, mais que insone: rosto inerme.” (p. 183/4)
Saudade do mestre Chamie, de sua inteligência, cultura, sorriso e ironia, que sempre me dava a sensação de que ele estava mesmo é tirando um sarro na nossa cara.
Recorrendo à história dos descaminhos da cidade, quem sabe possamos dar um rumo e animar os rostos de quem tem ocupado as ruas sem bem saber para onde ir.