Pais de vestibulando

Por Pedro de Santi

No dia 10 de novembro, estive em Ribeirão Preto para participar do front que a ESPM prepara para seu vestibular. Como em São Paulo, a faculdade promove um evento diferenciado: uma recepção aos pais dos alunos, com um generoso café da manhã e uma palestra de apresentação dos cursos. Enquanto seus rebentos fazem a prova, os pais são recebidos e podem experimentar algo do clima da instituição. Cerca de 150 alunos fizeram suas provas lá; muitos pais e irmãos foram acompanhá-los.

Para os pais de outras cidades, esta atividade vale mesmo como uma “experiência ESPM” e, especialmente, uma “Experiência São Paulo”. Além de admirarem a estrutura da faculdade, eles ficam aliviados ao perceberem como e por quem seus filhos serão recebidos.

O momento do vestibular é sempre revestido de significações fundas. Há uma série de desmames a serem feitos ao longo da relação entre pais e filhos; do corte do cordão umbilical à devolução do último cartão de crédito adicional (lá pelos 40 anos, hoje em dia). A entrada no ensino de nível superior parece a muitos pais como um corte: os filhos parecem agora estar encaminhados rumo a uma vida de autonomia e encontro profissional. E os pais reagem diferentemente a este momento. Alguns se colocam na situação de decidirem por seus filhos, uma vez que consideram saber mais sobre o mundo que eles, ou terem planos para que os filhos sigam determinada profissão e ingresse num negócio familiar. A maior parte dos pais quer poder ajudar, procurando uma medida em que possam estar presentes, sem serem invasivos.

O fato é que ao longo dos desmames, quando tudo corre bem, vai surgindo um sujeito em busca de auto-afirmação, e ela virá através da negação e distanciamento da família.

Em aulas sobre adolescência, costumo usar um diálogo ficcional como caricatura da tensão que envolve este momento. O pai vira para o filho e diz: “Eu quero o melhor para você”. Ao que o filho responde: “Que coincidência, pai, eu também quero o melhor para mim”. Melhor seria para por aí, no ponto de concordância. Mas a conversa prossegue. Diz então pai: “Eu sou mais velho e já vi muita coisa na vida e sei o que é melhor para você”. E o filho: “Mas pai, o mundo muda rápido e tudo o que você sabe caducou. Conheço nomes de carreiras sobre as quais você nunca ouviu falar”. A conversa pode ir esquentando, com os pais cobrando as noites não dormidas, os sacrifícios pessoais e financeiros. Finalmente, o filho poderá bradar, em tom dramático e novelesco: “Eu não pedi para nascer!”. Esta frase é crucial, pois é fato que nenhum de nós pediu para nascer e, neste sentido, não somos responsáveis pelos sonhos e expectativas que os pais estenderam sobre nós. Por outro lado, de fato devemos a vida a eles e, de alguma forma, temos que nos haver com esta dívida simbólica. A concomitância destes dois fatos gera muita tensão e dor no processo de constituição de si. Rupturas, submissões e muitas formas de compromisso serão tentadas para lidar com o paradoxo.

Não há como tornar-se sujeito sem romper com o campo do que foi sonhado para nós por nossos pais. Tudo vai bem no processo quando ouvimos deles algo como: “não foi isso que eu sonhei para você”, referindo-se à escolha profissional, amorosa, ou… geográfica. Aquela frase reveste-se de certa tristeza e o início de uma conformidade com o fato de quer os filhos não são os pais, eles existem e desejam para além. O mesmo vale para os pais, mas muitos deles se perdem na função de cuidado dos filhos e vão também abrindo mão de seus sonhos e de suas vidas. Quando os filhos põem as manguinhas de fora, pode vir um sentimento de vazio.

Uma das mães que acompanhava uma filha, disse; “Ela é filha única. Quando ela sai, a casa parece muito grande e vazia. Imagine agora, morando em outra cidade”. Aqui reside o risco: que os pais dificultem o processo de emancipação de seus filhos por temerem seu próprio vazio.

A função dos pais é ficarem para trás. Se eles trabalharam direitinho, participaram da criação de sujeitos razoavelmente autônomos, capazes de se relacionar com o mundo e com outras pessoas, capazes de cair e se levantar, etc. Eles devem mesmo se lançar no oco do mundo e reaparecer aniversariamente. Mas o diabo é que nem todos conseguimos ser desprendidos assim, muitos de nós somos mesmo um bando de italianos que seguram os filhos afetivas e financeiramente.

Voltando ao vestibular da ESPM em Ribeirão Preto, o momento intrinsecamente cortante do ingresso no ensino de nível superior é agravado pela condição de deixar de morar em casa. E a mudança não é para qualquer cidade: é para São Paulo. Boa parte das preocupações dos pais diz respeito à segurança, custo de vida e moradia.

Ao final da palestra, um dos pais veio me agradecer. Eu havia dito que quase um terço dos alunos da ESPM vêm de outras cidades ou estados. Disse também que a faculdade se transforma para muitos numa referência. Lá eles não só estudam, como muitos passam a tarde nas inúmeras atividades complementares oferecidas. Para além de estar impressionado com a estrutura da faculdade (ele estava), ele disse que o fato de fazermos um evento com os pais e contarmos que a faculdade tem uma cultura de recepção e acolhimento aos “estrangeiros”, fez com que ele se sentisse mais seguro para entregar seu filho ao mundo.

Eu concluí dizendo que era hora deles confiarem na educação que deram a seus filhos ao longo da vida. Esta frase costuma disparar um breve olhar distante: cada um revê o processo, revê seu temor de não ter podido ser um bom pai, e se prepara para o novo grau de separação que se anuncia. Hora de confiar sem entender e entregar ao mundo aquele que se ama. Dureza.

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