Otelo e o Ciúme: O monstro de olhos verdes – Desdêmona, Desdém, Demônia, Demidevil, Diabo, Iago

Por Pedro de Santi

Algumas das grandes peças de Shakespeare receberam adaptações para a ópera, assim como para o cinema, naturalmente. Provavelmente, a melhor entre as adaptações foi a ópera Otelo, composta por Giuseppi Verdi, em 1887. Uma peça grandiosa se tornou uma das melhores óperas de um dos maiores compositores do gênero.

Para expressar de forma concisa a dimensão de Shakespeare, o critico literário Harold Bloom (ver, por exemplo: “O cânone ocidental” ou “Shakespeare. The invention of the Human”) considera que ele literalmente inventou o Homem moderno. Mesmo Freud não seria mais que uma versão em prosa do trabalho do dramaturgo inglês.

Otelo (1603) é uma peça impressionante por contar, em primeiro lugar como um grande guerreiro e líder simplesmente se decompõe, tomado por ciúmes. O Mouro de Veneza é um negro que toma a liderança do exército e conquista, mais que grandes vitórias, o respeito de todos e o amor da jovem e bela Desdêmona. Pela intriga criada por um vilão- Iago- Otelo desmorona e, pela facilidade com que se deixar levar, acaba por revelar sua insegurança de base. Conforme o veneno dos ciúmes o intoxica, ele passa a sofrer de ataques de epilepsia, como expressão de perda de controle sobre si. O ciúme ganha uma dimensão delirante, quando em geral ele é a consciência sofrida do risco da perda do objeto de amor. Em dado momento, Otelo se despede de si mesmo e de suas realizações, ao perceber que está a se perder. Sob todo o seu poder, ele permanecia um estrangeiro, alguém que se vê aceito, mas sem pertencer de fato. À menor falha, a inclusão se revela superficial. Assim que ele demonstra fraqueza e ofende Desdêmona em público, outras personagens começam a dizer: é este o herói? Não se pode esconder por muito tempo o que se é! A aura de fascinação pelo estrangeiro reverte-se em repúdio, como é mais comum.

Desdêmona é uma figura pura, beirando o inverossímil. Inocente das acusações que sofre por Otelo, não se ofende. Suas palavras e fidelidade são impotentes ante a suspeita de Otelo, de nada vale seu amor e dedicação. Suas grandes cenas são duas. No início da peça (cena ausente na ópera), seu pai a chama para saber se guarda fidelidade a ele e se ela foi raptada por Otelo. Numa bela fala, ela expõe seu respeito ao pai, mas afirma dever mais fidelidade ao seu marido. O corte da posição de filha para a de mulher é sustentado por ela com segurança, ao evocar que sua mãe fez o mesmo ao se casar. Ao final desta cena, o pai dela diz a Otelo algo como: “cedo a você aquilo que, se já não fosse seu, eu jamais cederia” e lança uma praga, se ela deixou o pai, em algum dia ela poderá fazer o mesmo com ele. Quantos pais não nutrem sentimentos semelhantes ao entregar suas filhas ao futuro marido ao pé do altar? A outra grande cena de Desdêmona é a da noite de sua morte. Ela pressente que Otelo a matará, veste seu vestido de noiva e canta a Canção do Salgueiro (“The willow song”). Na ópera de Verdi, o compositor atribui a ela ainda uma belíssima prece Ave Maria. Quando Otelo chega, ela tem seu momento mais humano e dramático: sustenta sua inocência e implora pela vida por mais um dia, uma hora, ou ao menos um minuto. Em seu último suspiro, já na presença da ama Emília, Desdêmona inocenta Otelo.

No desfecho da história, quando a trama é revelada, Otelo se mata e diz que a morte será um alívio. Otelo e Desdêmona, em sua boa fé e ingenuidade, parecem ao mesmo tempo personagens de um mundo antigo, no qual as palavras eram confiáveis, e do Romantismo, dois séculos antes do movimento.

Mas, afinal, o protagonista da peça é mesmo o vilão Iago. Em Shakespeare, ele representa a ironia, o “wit”, presente também com força em Hamlet ou Falstaff. O “wit” seria uma “espirituosidade”, ou inteligência humorada. A ironia é uma figura da linguagem característica da Modernidade. Nela, sabe-se que as palavras não tem (mais) relação com as coisas. Seu uso expressa uma experiência de exílio num mundo em que as conexões entre as pessoas e as coisas se perderam. Numa montagem para o cinema em 1995, Kenneth Branagh faz uma intepretação brilhante de Iago. Em seus monólogos irônicos, ele olha para a câmera, fazendo de nós, expectadores, seus cúmplices. Ele manipula com facilidade os outros personagens. Na peça, ele tem uma motivação para sua ação destrutiva. Iago idolatra Otelo e esperava ter merecido sua indicação para uma promoção. Mas o indicado foi Cassio. O ressentimento por não ter tido o reconhecimento (o amor) de Otelo é o motor de seu ódio. “Eu odeio o mouro”, diz ele em seu primeiro monólogo. Na ópera de Verdi há um grande viés cristão e, nela, o vilão é uma pura manifestação do mal. Ele se permite destruir por considerar que depois da morte vem o ‘nada’, conforme canta numa ária assustadora (“Creio em um deus cruel”). Quando tudo é revelado, Otelo o chama de “demidevil”.

Outra personagem muito interessante é Emília, mulher de Iago. A princípio, ela também é manipulada por ele, levando de Desdêmona um lenço que será usado para incriminá-la. Mas sua falas sobre a condição feminina mostram um nível de consciência superior ao dos demais. Quando percebe a trama do marido- já após a morte de Desdêmona- é ela quem expõe o jogo, desobedecendo-o frontalmente. Sem Emília, Iago teria se dado bem até o final. Por este gesto de libertação, ela é morta por ele.

Otelo foi a penúltima ópera de Verdi. Sua música é exuberante e contínua: não há muitas pausas ao longo da ópera ou arias destacadas, como em suas óperas anteriores (La Traviata, por exemplo, composta 34 anos antes). Sua última ópera também teve uma personagem shakespeariana como tema: Falstaff. Em Otelo, o libretista Arrigo Boito optou por iniciar a ação no que corresponderia ao segundo ato da peça e há quem diga que isto melhorou a fluência da trama. Melhorar Shakespeare não é pouca coisa. Nos últimos 30 anos, o tenor Placido Domingo se tornou o maior intérprete do papel: há montagens filmadas com ele, tanto da ópera ao vivo quanto de uma adaptação para o cinema, por Franco Zefirelli.

Na peça e na ópera, há uma grande tensão que envolve poder e sexualidade. Iago diz que o interesse de Desdêmona por Otelo se baseia no desejo sexual, que passará. A cada vez que Otelo e Desdêmona se recolhem, algo os interrompe, o que faz com o Harold Bloom levante a hipótese de que eles nunca teriam chegado a consumar o ato sexual; o que poderia estar na base da insegurança de Otelo. Pode-se perceber também uma tensão assim na fixação de Iago por Otelo.

Mas a tônica da peça é o peso de sentimentos ruins. Os ciúmes exacerbados de Otelo, o ressentimento de Iago, a impotência de Desdêmona, o abuso sofrido por Emília, a traição que o pai de Desdêmona sente ter sofrido. Some-se a isto a situação de alguns personagens secundários: a perda da reputação por Cassio, por ter brigado embriagado; e a absoluta tolice de Rodrigo, apaixonado sem esperança por Desdêmona, manipulado e morto por Iago. Talvez seja uma das obras mais duras daquele grande conhecedor da alma humana. Não há sequer um pingo de humor, como em todas as outras peças dele. A não ser que se tome por humor a ironia feroz e ressentida de Iago.

SERVIÇO: Ciclo Opera e paixão. No quarto encontro, Celso Cruz e Pedro de Santi trabalham a peça e a ópera Otelo. Com o apoio de Heraldo Bighetti. Vale ACOM. Dia 29/08, às 16:30, na sala B 206.

Comentários estão desabilitados para essa publicação