Os mendigos, os três vinténs e o malandro

Por Pedro de Santi

“Então faça seu plano. Sim, seja uma luz brilhante. E faça então um segundo plano e nenhum vai funcionar. Entenda que nesta vida não há homem mau o bastante, mas é agradável vê-los tentando ser valentes”. “Canção da inadequação da vida”. Brecht e Weill.

“Agora já não é normal o que dá de malandro regular, profissional”. “Homenagem ao malandro”, Chico Buarque.

Certas obras culturais conseguem tocar o solo do mito, de modo a transcender seu contexto de origem. Ao longo do tempo, ela se mostra atual exatamente por admitir releituras que mantem a tensão entre sua identidade mítica e a diferença e especificidade do momento.

É um fio assim que liga a “Ópera do mendigo” (1728), de John Gay; a “Ópera dos três vinténs” (1928), de Bertold Brecht e Kurt Weill; e as duas versões da “Ópera do malandro” (em 1978, para o teatro e, em 1985, num filme de Ruy Guerra), de Chico Buarque.

Certas obras culturais conseguem tocar o solo do mito, de modo a transcender seu contexto de origem. Ao longo do tempo, ela se mostra atual exatamente por admitir releituras que mantem a tensão entre sua identidade mítica e a diferença e especificidade do momento.

É um fio assim que liga a “Ópera do mendigo” (1728), de John Gay; a “Ópera dos três vinténs” (1928), de Bertold Brecht e Kurt Weill; e as duas versões da “Ópera do malandro” (em 1978, para o teatro e, em 1985, num filme de Ruy Guerra), de Chico Buarque.

Há enormes diferenças entre elas, mas mantem-se um núcleo de personagens principais. Um bandido que sempre se livra de responder por seus crimes e uma namorada simples, apaixonada por ele e a quem ele usa sem pudor. Há também um casal mais velho, burgueses e donos de um negócio escuso e bem sucedido. Um chefe de polícia amigo da bandidagem e servil ao poder do Estado e da burguesia. E entre os dois casais, a filha do casal mais velho, que se apaixona pelo bandido e com ele se casa escondida dos pais. A princípio, ela parece ingênua e também seria usada por ele para subir socialmente mas, através de uma série de reviravoltas, acaba se mostrando extremamente esperta e ainda mais apta para os negócios no mundo moderno que se afigura.

Sob esta narrativa, vemos um mundo sempre em transformação, com os artifícios que os ocupantes de posição de poder usam para se adaptar às mudanças sociais e se manter onde estão. Todas as personagens encarnam modalidades de malandragem, nenhuma escapa desta lógica. Há o pequeno malandro de rua descolado, o empresário, o policial corrupto, a menina oportunista.

Desde a concepção de John Gay, a ópera é satírica e com a intenção de ter apelo popular. As canções são acessíveis e fácies de memorizar. Da ópera original, por exemplo, restou uma canção ainda muito conhecida: “Greensleeves”.

Na versão de Bertold Brecht, podemos assistir à sua leitura marxista, atualizando a máxima do “Manifesto Comunista”: no mundo moderno, tudo tem que se transformar constantemente para que tudo permaneça igual.

Brecht mantem a ação em Londres. J. J. Peachum tem um negócio lucrativo, ele é conhecido como o Rei dos mendigos e os agencia para terem “olhos tristes por profissão”. No belo filme produzido por Georg Wilhelm Pabst em 1931, Peachum traz sinais caricaturais de ser judeu. Quando sabe que sua filha, Polly, está se relacionando com o bandido Mackie Messer, fica enfurecido. Pede ao chefe da polícia que o prenda e ainda lidera um desfile dos mendigos no dia da coroação da rainha, para causar constrangimento à cerimônia e pressionar a polícia atendê-lo. Adiante, perde o poder sobre os mendigos e fica sabendo que, graças à intervenção de sua filha, Mackie se tornou dono de um banco. Mais do que depressa adapta-se à nova situação muda de posição e recebe o genro como sócio querido.

O malandro da peça é Mackie Messer (Macheath, na peça de John Gay). Seu tema musical se tornou o mais famoso da ópera. Composto por Kurt Weill, ganhou uma versão em jazz, conhecida como “Mack the Knife”, com gravações de Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e Frank Sinatra, entre muitos outros. Sob uma melodia alegre e cativante, as letras em alemão e inglês falam de um assassino envolvido em inúmeras situações criminosas obscuras, dono de dentes de tubarão, que mantem escondidos.

A colaboração de Brecht e Weill rendeu ainda outra ópera: “A ascenção e queda da cidade de Mahagony” (1930). Da “Ópera dos três vinténs”, ficaram ainda outras canções importantes, como a “Canção da inadequação da vida”, ou a “Canção dos canhões”, na qual Jenny, ressentida por Mack lhe ter abandonado, sonha com a chegada de uma esquadra para resgatá-la, apontando seus canhões sobre a cidade. É a origem da quase delirante “Geni e o Zeppelin”, da ópera de Chico Buarque. Jenny foi interpretada no teatro e no filme de Pabst por Lotte Lenya, esposa de Weill e intérprete perfeita para o ambiente de cabaret de suas composições.

Em 1933, com o avanço do nazismo, os dois emigraram para os Estados Unidos. Brecht ainda voltou para a Alemanha oriental e se tornou um dos mais importantes dramaturgos do século 20. Kurt Weill permaneceu na América e se tornou compositor de musicais. Algumas de suas belíssimas canções são consideradas “standards da canção americana”, como “Speak Low” e “My foolish heart”.

Na versão de Chico Buarque, há canções antológicas tanto na peça quanto no filme. Já presentes na peça: pense-se em temas como “Homenagem ao malandro”, “Pedaço de mim” ou “Folhetim”; em canções irônicas como “O casamento dos pequenos-burgueses” ou “Se eles me pegam agora”. E a dolorosa canção da mãe ressentida com a filha: “Uma canção desnaturada”? O Tema “Mack the Knife” ganhou duas letras em português: “O malandro” e “O malandro n. 2”. A primeira conta o conflito de classes; a segunda, o triste fim da malandragem original. Das canções originais para o filme, tornaram-se clássicas “A volta do malandro” e “Palavra de mulher”, por exemplo.

O tom de crítica social permanece, mas parece haver um tom mais melancólico; percorre a trama e um grande número de canções a nostalgia pela perda de um mundo mais humano, engolido pela técnica e burocracia. O velho malandro da Lapa carioca foi substituído pelo malandro político e empresarial, (mal) disfarçado de globalizado e eficiente.

A peça é ambientada no início da segunda guerra. O malandro é agora Max Overseas, enquanto o empresário é tão caricato quanto o Peachum judeu de Pabst. Na peça, Duran. No filme, temos agora um alemão chamado Struedel: um cafetão com sotaque de novela e que entra em pânico quando o Brasil adere aos Aliados. Este é um dos motivos pelos quais acaba por aceitar o genro como sócio.

No conflito de classes e transformações do poder ao longo das peças, uma cena emblemática é a do casamento de Mackie e Penny. De madrugada, num galpão imundo ao lado do porto e na presença de um sacerdote aterrorizado, chega o casal. Em poucas horas, os comparsas de Mackie produziram a cerimônia, tendo furtado de tudo um pouco pela cidade. Na versão do Chico, é quando toca o delicioso “Tango do covil”. Mackie é um malandro sedutor; Penny, uma patricinha; os comparsas, a mais baixa ralé. O encontro poderia ser desastroso, mas Penny tira de letra a situação e quebra a tensão. Seu pai, afinal, é o Rei dos mendigos. E ela se tornará aquela que irá modernizar os negócios do pai e do marido.

Pois, como todos sabemos, neste mundo pós-globalizado e cada vez mais competitivo, é preciso ter flexibilidade e uma atitude pró-ativa. Toda empresa é um negócio como outro qualquer e deve saber se posicionar no mercado para Max Overseas seus lucros a qualquer preço. Etc.

Serviço: Sexto encontro do ciclo Ópera e paixão. “A ópera dos três vinténs”, de Bertold Brecht e Kurt Weill. Pedro de Santi e Celso Cruz irão apresentar e discutir a peça. Com o apoio do Heraldo Biguetti. Vale Acom. Dia 31/10, às 16:30 na sala B 104.

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