O terror hiper-exposto: do ganho de consciência ao risco do exemplo

Pedro de Santi

Ao longo do mês de julho, acompanhamos quase que diariamente no noticiário internacional situações de terror. Pessoas se empenhando em dar fim à vida de outras pessoas, tendo como desfecho a própria morte.

Em muitos dos casos, tratava-se do terrorismo do Estado Islâmico que, encolhido em sua dimensão territorial e pretensão de se tornar um Estado, torna-se definitivamente terrorismo internacional. Há também casos de pessoas que perpetraram seu ato de terror e se remeteram ao Estado Islâmico, sem ter qualquer relação direta com ele. E há ainda pessoas que embarcam em uma viagem individualizada e messiânica, como no caso do japonês que esfaqueou dezenas de idosos numa clínica de saúde mental para idosos. Multiplicam-se os “lobos solitários” que atingem “soft targets”, no jargão também terrível que se difunde.

De toda a forma, somos todos bombardeados pelo terror tornado epidêmico e mundial. Na realidade, o ataque às torres gêmeas de 11/09/2001 impôs uma marca: no século 21, não há lugar seguro e a guerra fria se tornou horror real nas ruas, espalhado geograficamente e atingindo pessoas aleatoriamente. Ainda assim, julho de 2016 foi um mês especialmente dramático. Não é à toa que haja uma grande preocupação com os Jogos Olímpicos que começarão no próximo dia 5, no Rio de Janeiro.

Neste texto, gostaria de evidenciar um dos tantos aspectos envolvidos: a super-exposição do terror na mídia e seus possíveis efeitos psicológicos.

No dia 17/07/ o Editor Chefe da Folha de São Paulo, Sérgio Dávila, escreveu uma coluna chamada “Cobertura sobre atentado deve causar choque e repulsa”. Com a autoridade de quem cobriu a guerra do Iraque, ele defende a disponibilização, por parte da Folha, de um vídeo mostrando de perto e em tempo real os resultados do atendado em Nice, no qual 84 pessoas morreram, atropeladas por um caminhão. A Folha havia sido criticada por disponibilizar imagens fortíssimas de feridos e mortos e o Editor sustentou a posição do jornal com dois argumentos: em primeiro lugar, o vídeo não era exposto a qualquer um, mas requeria uma série de opções que indicavam conhecimento e interesse consciente sobre aquele conteúdo; em segundo, ele argumentava que era preciso expor o terror em sua crueza absoluta para que seja gerada a repulsa que ele requer. É uma forma de dizer: não é um filme, não é um game, não é bonito; é horror, dor e morte de pessoas que poderiam (poderemos) ser nós mesmos e pessoas que nos são queridas.

Como todos já sabemos, nosso excesso de acesso é tal, que vai se formando uma saturação na condição de percepção. Já não somos capazes de discernir, identificar e, mesmo, ser afetados pela massa de estímulos que se impõe a nós. Tudo fica nebuloso e chapado, como na célebre “cegueira branca”, do livro Ensaio sobre cegueira (1995), de José Saramago. Como chegar ao receptor? Como atravessar a casca protetora de entorpecimento e toca-lo? A resposta da Folha, neste caso, foi expor o horror crú. Faz sentido.

Mas a contrapartida disto é justamente a extensão do campo do representável. As imagens são reais, o que lhes dá muita força, mas elas entram na fluxo de informações e representações. Dois riscos derivam disto. O primeiro, é mesmo tornar imagens do terror banais, fazendo com que sua exposição, ao longo do tempo, perca a potência de mobilização.

Lembro-me de uma discussão em torno do lançamento do filme A lista de Shindler (1993), de Spielberg. Com toda a seriedade com que o filme foi produzido- longe na constrangedora banalização de A vida é bela (1997), de Roberto Benigni, por exemplo- muitos criticaram o filme justamente por considerar que a representação do Holocausto poderia produzir exatamente uma banalização e estetização. Aquilo que ganha representação perde seu potencial traumático, diz a psicanálise. Mas, para aqueles que criticavam o filme, trata-se justamente de manter a dimensão traumática, manter aquele terror fora do campo do pensável; não curar a ferida. Para esta posição, também respeitável, a estratégia do longo documentário Shoah (1985), de Claude Lanzmann é mais acertada. Ao invés de usar representações, ele recorreu a testemunhos de sobreviventes judeus e não judeus. O testemunho documental traz à presença, sem representar, paradoxalmente.

O segundo risco da super-exposição é ainda pior: estetizar aqueles atos, dar uma representação e forma para o ressentimento, o ódio a si e aos outros que permitam que aquelas cenas se transformem em exemplos. Quando nos parece que esteja havendo uma “epidemia” de atos de terror, parece haver uma indicação de que esteja havendo, de fato, um contágio.

Desta perspectiva, é como se o Estado Islâmico estivesse conseguindo se tornar um catalisador para muitos dos que trazem em si a inclinação para a aniquilação de si e dos outros. Ele ocupou um lugar em nosso imaginário, o que mostra a força da “propaganda do terror”. A cada notícia de ato de terror, logo imaginamos que haja alguma relação com ele.

“Nós não conhecíamos a escuridão de seu coração”, disse um vizinho do homem que matou 19 idosos num asilo no Japão. Há muita escuridão, talvez em todos os corações. Algumas delas ocultam um ódio imperativo e informe, só aguardando por vias de descarga. Elas podem ser fornecidas pela difusão de imagens da banalidade do mal.

Comentários estão desabilitados para essa publicação