O Homem da companhia: executivo ou executor?

Pedro de Santi

Em 1995, o jornalista Anthony Sampson editou um livro excepcional. Em O Homem da companhia (São Paulo, Cia das Letras, 2000), ele faz um levantamento extensivo da história das organizações e das relações tecidas entre elas e as pessoas. São centenas de registros de administradores, historiadores e romancistas nos quais a cultura das organizações e suas transformações são apresentadas. A leitura é também muito prazerosa.

Apesar de já ter 20 anos, a análise que faz ainda pode nos ajudar a pensar nossa prática e o ensino. Vou me aproveitar da obra para relembrar a importância de uma formação abrangente em cultura geral e repertório na formação profissional, no mundo de hoje. Agradeço ao amigo professor Fred Lúcio por ter me apresentado o livro.

Segundo Sampson, a própria origem do termo ‘companhia’ remeteria ao comércio voltado ao exterior a partir das cruzadas. Firmas marítimas italianas passaram a se denominar ‘compagnie’, com o sentido de serem aqueles compartilhavam o pão (cum-panis). Mas é claro que foi no contexto da Revolução industrial que elas passaram a adquirir suas características atuais. Ao longo do século 19, as ferrovias norte-americanas, com sua necessidade organizacional de alcance nacional, firmaram as bases de sua estrutura. E muitas das grandes marcas que conhecemos hoje derivam do mesmo período.

As organizações se tornaram novos paradigmas na relação do indivíduo com a sociedade, com sua autonomia de gerenciamento. Em Frontiers of management (1986), Peter Drucker diz sobre a companhia:

“Foi a primeira instituição nova em centenas de anos, a primeira a criar um centro de poder que estava dentro da sociedade, mas era independente do governo central do Estado nacional.” (Apud, Sandler, p. 40).

Com a emergência deste poder da companhia, surgiu concomitantemente a preocupação com seu poder, que ameaça o individualismo. O gerente e sua submissão à empresa foi a figura crescente e impessoal a habitar aquele ambiente. Nas palavras de Woodrow Wilson, ainda antes de ser Presidente dos EUA, em The new Freedom (1913): “Você sabe o que acontece quando é empregado de uma empresa. Você não tem nenhuma instância de acesso aos homens que estão realmente decidindo as diretrizes da empresa (…) Sua individualidade é engolida pela individualidade e pelos objetos de uma grande organização…” (Apud. Sandler, p. 54)

O mais interessante é que Sandler analisa as tendências de condução das empresas nos últimos 150 anos. As primeiras grandes empresas eram predominantemente submetidas a um regime autocrático, com um fundador longevo que comandava os processos de forma centralizada. De fato, com a morte de alguns deles, muitas de suas empresas amargavam uma forte decadência. Em meados do século 20, uma visão técnica (tecnocrática) e impessoal imperou. A criação de uma cultura gerencial e o desenvolvimento de gerentes passou a ser a tendência. Aqui, modelos burocratizados de controle passaram a dominar, com a mentalidade de que uma empresa deva funcionar como uma máquina. Coerentemente, neste contexto cada trabalhador é um técnico a ser monitorado e incumbido apenas de operacionalizar as determinações recebidas; não cabe a ele pensar.

Mas esta visão teria sido superada por dois caminhos: de um lado, a partir dos anos 70, com a entrada do modelo de negócio da informática, liderado por nerds universitários do Vale do Silício. Eles impuseram uma alta informalidade do ambiente e regime de trabalho, numa aparente adolescência eterna; de outro lado, a abertura dos mercados internacionais, sobretudo a partir dos anos 80 com a Globalização, impôs uma visão mais abrangente, cultural e humana dos negócios. Um gerente restrito apenas às dimensões técnicas e internas à empresa já não poderia acompanhar a direção dos negócios:

“As chaves para o sucesso de longo prazo- até mesmo a sobrevivência- nos negócios são as mesmas de sempre: investir, inovar, liderar, criar valor onde não havia antes. Esta determinação, esse empenho em se superar exige líderes- não apenas supervisores, analistas de mercado, e gerentes de portfolio”. (Hayes e Abernathy, 1980, “Administrando nosso caminho para o declínio econômico”. (Apud. Sandler, p. 243).

O sonho do início do século de passar toda a vida numa mesma empresa foi se esfacelando desde os anos 70. A lealdade mútua deixou de ser um valor. Todo o ambiente passou a ser volátil, com menor segurança de emprego e a criação e destruição de marcas poderosas numa velocidade inédita. O próprio emblema das empresas representado pelo escritório passou a ser parcialmente deixado para trás, em favor do trabalho em trânsito ou em casa. Em muitos lugares, os escritórios passaram a ter um ambiente caseiro, e muitas casas se transformaram em home-offices. E, como sabemos, com o uso recente dos smartphones, o limite entre estar dentro e fora do trabalho desapareceu

Curiosamente, segundo Sandler, o modelo que passou a dominar o final do século 20 seria derivado do japonês, com as características de procurar combinar a responsabilidade com a comunidade e conviver com uma maior flexibilidade.

Levando em consideração este percurso pela história do Homem da companhia, podemos encontrar o valor de uma formação abrangente em Ciências Humanas e cultura geral. No ambiente contemporâneo, saber administrar (mas isto vale para muitas outras ocupações) inclui ser capaz de analisar e compreender o complexo universo das empresas: o que envolve pessoas, o ambiente cultural e político, relações com governos e legislações diferentes do mundo todo. Tudo isto em dimensão socioambiental.

Não se trata de dominar tecnologias ou conhecimentos consolidados, mas de ser capaz de refletir, analisar, criar e propor direções.

Alguém formado sem estes recursos estará preparado para ser um executor, mas não um executivo.

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